RECORTES –
Tão logo amenizado o período de saudades, compreende-se que está na hora de rebuscar os guardados do ente querido, para fazer uma triagem e “reorganizar” os papéis. Incluem-se aí, procurar documentos importantes, fotos antigas, chaveiros, postais, contas e cartões bancários, enfim.
No entanto, isso, não deixa de ser um permeio pela intimidade daquele que amealhou anos e anos seus trecos, mas que agora já não tem mais a chave do segredo do seu tesouro de lembranças.
Pois bem, assim foi com as ‘coisas de mamãe’, como cultua minha mana Vera. Entre um achado e outro, uma lágrima, uma admiração: “Olha só o que ela guardava!”. Um retorno ao seu tempo, ao divagar sobre o que aquela foto, amarronzada e desgastada em uma das extremidades, significou na vida do familiar querido, ali, agora, devassada.
Um caderno de capa dura chamou a atenção pelo avolumado de recortes de jornais, de revistas e de outras anotações coladas em suas folhas. A princípio seria um caderno de receitas, pois era comum, entre as donas de casa, herdar dos pais e avós, o como fazer comidinhas gostosas.
Demorei muitos anos para entender o que e o porquê, daqueles recortes. O que eles significavam e o que a motivou a guardar, com tanto zelo, aqueles escritos extraídos e fixados, como troféus, naquelas folhas pautadas, tal qual um diário de eventos, de um tempo que passou, de emoções registradas.
Não tinha outra forma de vagar pelos seus sentimentos, se não, ler cada um daqueles recortes, com a serenidade de um monge, com a expectativa de um pensador, com o respeito merecido pelas emoções vividas que foi se acumulando, página por página, e iam marcando seus passos, como um mapa mostrando os caminhos percorridos.
Muitas desses recortes eram fragmentos de alguma matéria, mas estavam sem a origem, sem o título e sem a data. Alguns eram figuras de vestidos, de bordados, de propagandas de eletrodomésticos, de notícias sobre as conquistas da mulher, de estrofes, de citações poéticas, bilhetes dos netos, notícias políticas e, até, frases soltas. Mesmo assim, cada um estava repleto de significados.
Tentei ordená-los, para deles traçar um perfil sobre a vida vivida, mas desisti. Não era justo que eu quisesse impor o meu modo de achar sobre o que tudo aquilo poderia exprimir . Afinal a sua verdadeira essência só a ela pertencia.
Isso me fisgou, e hoje, faço muito parecido. Quando algo chama minha atenção, ao ler os jornais, folhetos e revistas, sublinho, recorto ou separo a folha. Guardo numa pasta ou caixa plástica para ler novamente depois, com calma, interpretando o que aquilo realmente quer comunicar. Outras vezes utilizo a câmera do celular e arquivo digitalmente, para posterior leitura e reconsiderações.
Se um dia vou rebuscar, não sei. Mas tenho certeza, que quando meus olhos já não estiverem mais abertos para “manuseá-los”, algum de meus filhos ou netos, também dirão: “não sei pra que ele guardava isso”.
Já vos digo: esses meus recortes funcionam como um baú de bugigangas que me instigaram – textos e escritos que fui acolhendo carinhosamente dia após dia. Cada vez que preciso deles, mexo e remexo nos conteúdos das caixas/pastas e, em alguns daqueles guardados, já não encontro mais sentido e descarto.
Assim como esse hábito, a nossa vida também é repleta de recortes.
Se fosse possível editar o que foi vivido por cada um de nós, certamente faríamos recortes dos momentos sofridos, desgastados, doentios, insanos até, e colaríamos num caderno envolvido com uma capa de papel madeira, nela escrito: “Momentos Superados”.
Sobrariam os recortes dos momentos saudáveis, das alegrias, dos encontros, dos amores vividos, das vitórias e das gratidões. Também em outro caderno, e, na capa, com letras vivas: “Vida e Graças”.
Será que Deus também tem o Seu caderno com os recortes de nossas vidas? Se tiver, decerto, na capa estará escrito: “Perdoados”.
E você? Quais são os recortes de sua vida? O que tem feito deles?
Carlos Alberto Josuá Costa – Engenheiro Civil, escritor e Membro da Academia Macaibense de Letras ([email protected])