SALAMANCA EM CERVANTES –
Não faz muito tempo, no rescaldo do Carnaval, participei de uma expedição a Salamanca, na Espanha. A famosa cidade universitária, enfatizo. Era minha segunda vez por aquelas bandas. Revisitei sítios famosos. E descobri coisas novas. Maravilha!
Dentre essas descobertas, na loja da própria Universidade de Salamanca, caiu em minhas mãos – e eu segurei, pagando uns 10 euros para tanto – um livro deveras engenhoso: “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006), por Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares. Para além do seu conteúdo, o danado, em formato grande, com muitas imagens, entre elas reproduções de gravuras de Gustave Doré (1882-1836), é uma bela edição.
Para quem não sabe, Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), neto de um licenciado em direito e filho de um médico de província (este provavelmente sem formação universitária), nasceu em Alcalá de Henares, nas abas de Madrid, historicamente uma das cidades universitárias mais prestigiadas da Espanha. Todavia, pouco ali viveu. Coisa de quatro anos de idade e já estava de mudança, não deixando Alcalá marca maior na imaginação do escritor como pátria estudantil/universitária dos falantes de língua espanhola/castelhana. Esse lugar é ocupado por Salamanca, como veremos a seguir.
Cervantes foi um gênio. Como poeta, dramaturgo e, sobretudo, como romancista, ele é sinônimo de literatura em língua espanhola, sendo esta às vezes chamada de “a língua de Cervantes”. Não preciso dizer que o “Quixote” (“El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha”, no original) é uma obra-prima da literatura universal, por muitos considerado o primeiro romance moderno e, com certeza, um dos melhores já escritos em todos os tempos.
Todavia, ao que tudo indica, Cervantes foi um gênio autodidata, sem estudos oficiais, ao contrário do que por vezes se imaginou. Segundo registra Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, “Cervantes, ao contrário de Góngora, Calderón ou Quevedo, não parece ter feito um curso universitário, nem em Salamanca nem em Alcalá, e deve ser considerado um autodidata, embora de formação humanista e acentuado gosto pelos livros. A formação de Cervantes suscitou diversidade de opiniões. Ele mesmo parece se definir como ‘pouco alfabetizado’ e de ‘sabedoria leiga’. O mais provável é supor uma educação de cunho humanista e de nível pré-universitário, obtida em colégios jesuítas ou municipais, como já indicamos. Implicaria isso um certo nível de conhecimento do latim, manifestado, entre outras coisas, em várias citações e expressões de Dom Quixote? Por outro lado, Cervantes demonstra familiaridade com a obra de vários autores clássicos como Homero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Cícero, Terêncio, Sêneca, Júlio César, Salústio ou Plutarco, para citar alguns. Os especialistas também apontaram um marcado autodidatismo em Cervantes e um notável amor pela leitura”.
Parece mesmo certo que Cervantes – à semelhança de Shakespeare (1564-1616), para citar outro exemplo célebre – faz parte de um pequeníssimo grupo de homens premiados pela natureza com o raro dom da genialidade, a despeito das evidências de que ele conhecia razoavelmente os clássicos gregos e latinos, repercutindo isso nas suas obras, entre elas o “Quixote”.
Entretanto, apesar do autodidatismo de Cervantes, também é certo o seu amor – talvez seja até melhor dizer “fascínio” – pela vida universitária, sobretudo a salamantina. Como anota o autor de “Atmósfera universitaria em Cervantes”, Salamanca “constitui uma referência literária e um fascínio cultural ao longo de toda a obra de Cervantes. São recorrentes as alusões míticas a Salamanca como cidade do saber e das letras, diferentemente do que se dá com Alcalá, que quase desapareceu no próprio Dom Quixote. Também inexistem alusões à Universidade de Valladolid [a UVA, outra tradicionalíssima instituição de ensino da Espanha], cidade onde viveu o romancista. Alusões a Salamanca aparecem, sim, em vários capítulos do Dom Quixote (…)”.
Esse “fascínio universitário” inclui, como pontuado em “Atmósfera universitaria em Cervantes”, quase todos os ramos do saber: letras e humanidades, lógica e filosofia, saberes médicos e, por supuesto, o velho e bom/mau direito.
E é sobre a “ciência jurídica em Cervantes” que papearemos na próxima semana. Prometo.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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