SALVADOR DALÍ, O DUPLO –
É necessário reaprender, adequar a vida a este tempo estranho, surreal, em que o gregário ser humano vive isolado. É tempo de perigo, medo e solidão. Ficar em casa, como tudo na vida, tem o seu lado bom. Estou matando a minha fome de bons livros, de apreciação literária e artística.
Para encarar a dura realidade, tenho dado preferência ao realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges. Visualizo as obras de arte do artista mais genial do século XX, Salvador Dalí 1904-1989), de quem, para se gostar, é imprescindível ter a mente aberta e o sentimento da tolerância. De um lado, obras mestras de pintura inspiradora como a dos melhores artistas da Renascença; de outro, a provocação, as excentricidades, a paixão pelo dinheiro e pelo luxo, do seu narcisismo sem limites.
Ele se dizia o outro de seu irmão que havia morrido. Será que a ele se referia Jorge Luis Borges em poema denominado “Junin”? Borges verseja: “Sou, mais sou também o outro, o que morreu, / o outro de meu nome e sangue herdeiro”.
Além de pintor, foi artista de excelência também como escultor, ilustrador de livros, designer, criador de joias, filósofo, escritor, poeta, publicitário e ótimo vendedor da sua obra e da própria imagem. Fez parcerias cinematográficas com Luis Buñuel e Alfred Hitchcock. Mereceu extensa e intensa ode de Federico Garcia Lorca.
Também a ele é creditada a antecipação da arte cinética, criação do natalense Abraham Palatnik. Uma joia, “O Coração Real”, feito de ouro, com diamantes e esmeraldas, pulsa o vermelho de rubis.
Além das cidades catalãs, amava Paris e Nova Iorque. Paris, por ser a cidade mais inteligente do mundo. Nova Iorque, pelos dólares. Nessa cidade, costumava dar banquetes, convidando amigos e admiradores. Ao pagar a conta, era generoso na gorjeta. Depois, desenhava no dorso do cheque. Tinha certeza de que a ordem de pagamento não seria descontada.
Era desmedida a sua admiração por Picasso. Foi visitá-lo em seu apartamento parisiense. O visitante notou os dois botões de jade dos olhos e considerou o pensamento de Picasso: “Este é o outro”.
Na Espanha, produziu conferência que começou dizendo: “Picasso é espanhol. Eu também. Picasso é comunista. Eu não sou. Picasso é gênio. Eu também…”
Um jornalista perguntou-lhe se era verdade que ele admirava Franco, Stalin, Hitler, Mao Tsé Tung. Contestou o todo com a parte: “Eu não admiro Hitler. Hitler é que me admira”.
Um grupo de surrealistas vai visitá-lo em Cadaqués, entre eles o poeta Paul Éluard com sua esposa Gala, uma bela imigrante russa. O grupo voltou a Paris e a mulher de Éluard ficou. Ele explica: “Gala me olhou, me adotou. Fui seu recém-nascido, seu menino, seu filho e seu amante”. Gala é a fonte, define.
Com grande propulsão ao delírio, Dalí dizia não distinguir bem o que era sonho ou o que era realidade. O seu amigo biógrafo, Antonio Domínguez Olano, duvidava da existência fantástica do seu biografado: “Às vezes penso que Dalí não existiu, que é uma invenção, uma cumplicidade da humanidade inteira”.
Ele existe.
Não abandone Dalí por sua segunda face. Ame o outro, maravilhoso.
Diogenes da Cunha Lima – Advogado, Poeta e Presidente da Academia de Letras do RN