SANDERSON NEGREIROS: O ARTISTA DAS PALAVRAS –

Encantou-se em 19 de dezembro de 2017 o primo e amigo José Sanderson Deodato Fernandes de Negreiros, aos 78 anos (nasceu em Ceará Mirim aos 03 de julho de 1939). Foi casado com a juíza Ângela Negreiros e pai de Rodrigo Negreiros. Depois que enviuvou de Ângela, Sanderson praticamente isolou-se do mundo. Conversar com Sanderson era sempre um prazer renovado. Cultura vasta, lia tudo e todos, escrevia uma prosa diversificada, fazia poesia com naturalidade, verve e beleza, possuía uma biblioteca de mais de vinte mil volumes. Autor de vários livros, começou aos 15 anos editando “O ritmo da busca”. Quando o meu pai, Rafael Negreiros, chegava em Natal ele fazia questão de encontrá-lo todos os dias, ocasiões em que ficava provocando para que seu Rafael contasse histórias que ele já conhecia.

Era o último fundador vivo de uma cadeira na Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL. Foi eleito em 13 de abril de 1967, aos 28 anos de idade, para a cadeira de número 40, mas, só tomou posse em 11 de dezembro de 1977. Escolheu como patrono Afonso Ligório Bezerra. Tive a honra de ser saudado por Sanderson quando tomei posse na ANRL em 14 de agosto de 2002.

Estudou no Seminário São Pedro, em Natal, entre os nove e treze anos de idade, período da viuvez de seu pai, onde fez o ginásio. Cursou o segundo Grau, atual ensino médio, no Atheneu Norte-rio-grandense e, em seguida, fez os vestibulares de Direito e filosofia. Foi aprovado em ambos, escolheu pelo Curso de Direito. Era bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Natal, Jornalista, auditor do Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, adjunto de Promotor, professor de “Cultura Brasileira”. Foi secretário de Estado para Assuntos Extraordinários, no Governo do saudoso Tarcísio de Vasconcelos Maia. Foi, por quase três anos, presidente da “Fundação José Augusto”.

Vejamos a prosa de Sanderson em um prefácio que fez para um livro de Rafael Negreiros:

“Certa vez, levando Rafael à casa de Grácio Barbalho, ele pode comprovar realmente que tudo que passara nos seus olhos, não passou; fixou-se nele como símbolo de espanto. Grácio colocava, na vitrola, discos de filmes antigos. Rafael saía dizendo os nomes por inteiro dos filmes, dos atores, dos diretores, de ajudantes de direção. Por aí afora… Grácio, de pouquíssimas palavras, só fazia murmurar: “É impossível”. Mas para ele não havia medida de tempo nem conveniência. De uma sinceridade universal, era generoso ao extremo. As polêmicas verbais entre Rafael, Jaime Hipólito Dantas e Dorian Jorge Freire eram tensas e intensas, no mesmo dia, procurava-os para um acerto de contas: “Vamos fazer as pazes”. E faziam, como se nada os distanciasse nas opiniões opostas.

O grande amigo, também memorialista, foi-lhe Francisco Fausto. Este, magro e irônico, soberano na arte de escrever e grande na virtude de narrar oralmente o acontecido, foi uma figura marcante da amizade de Rafael. Poucas vezes, Woden Madruga com ele esteve, mas era como se tivessem conhecimento um do outro há várias reencarnações. Rafael tinha o faro de gostar de cara – as afinidades eletivas não precisavam de tempo nem de aproximação.

Tudo isso que revejo e sob o lume de saudosa recordação, vem, principalmente, a propósito dos 80 anos de Elizabeth Negreiros (14 de agosto de 2010), que estou a saber agora, acontecidos e comemorados. Esposa de Rafael, é uma doce figura humana, que sempre pôde ser mística presença de bondade, com seu riso claro, de água cantante de fonte, que fez a contrapartida de tudo aquilo que em Rafael podia ser exagero, vibração incontida de falar e revelar. Às cinco da manhã, Elizabeth estava a orar na Catedral de Mossoró, tão meiga e generosa, como estou a imaginá-la nos seus gestos de mãe e esposa, que dela, com afeto, carrego pela vida afora; de minha vida que já ultrapassou a cancela dos 70 anos; e prossegue para limitar os últimos hectares dessa desprovida passagem terrena.”

Pelo trecho acima podemos avaliar a sensibilidade do escritor poeta.

Um pouco de genealogia para esclarecer o parentesco. O pai de Sanderson chamava-se Abílio Deodato do Nascimento e a mãe Carolina Fernandes de Negreiros. Como podemos observar, Abílio homenageava as mulheres já que colocou o sobrenome da sua mãe – Deodato – e da sua esposa – Fernandes de Negreiros – em todos os filhos. Eram irmãos de Sanderson: Nelson, desembargador; Emerson, monsenhor, passou os últimos anos na paróquia de Niteroi – RJ; Jackson, tabelião, pai de Jackson, Marckson, José Neuman e duas gêmeas; Maria Delsa e Gelsa Carolina.

A mãe de Sanderson, Carolina, era filha de Porfírio Antunes de Negreiros e Maria Alves Maia (Cocota ou Maricota Negreiros). Tinha cinco irmãos Solon Fernandes de Negreiros, pai de Elizabeth, minha mãe; Manoel Fernandes de Negreiros, pai de Rafael, meu pai; Diogo, José, Seledon e Margarida. Portanto, Sanderson era primo legítimo do meu pai e da minha mãe. Depois que ficou viúvo, Abílio casou-se com Nitinha Costa e tiveram Gunderson, dentista.

Para encerrar vamos curtir a prosa de Sanderson em alguns trechos do Discurso de Recepção que ele fez na minha posse:

“Eu sou o último dos que entraram nesta Academia por ordem de escolha, e não por eleição. Eu e Newton Navarro. Certa vez, quando ainda vaquejava a vida, sendo repórter do Diário de Natal, na velha avenida Rio Branco, exatamente na ladeira que se entrega à Ribeira libérrima, Manuel Rodrigues de Melo e Veríssimo de Melo procuraram-me na redação e me intimaram: “Por sistema de escolha, você, a partir deste instante, é imortal por nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras”. Eu tinha 27 anos. Lembrei-me da boutade de Olavo Bilac: “É-se imortal porque não se tem onde cair morto”. Passei dez anos para tomar posse e, usando como hoje uso, esta beca azul com imenso medalhão medieval, tenho sido talvez o que mais tenha feito desta tribuna discursos de saudação, recepcionando os imortais que chegam, até que Vicente Serejo — conforme sua promessa a mim feita — faça o discurso de despedida.

Agora, tenho que empregar, em meio à prática estatutária e sentencional desta Casa, uma maneira menos convencional possível: saúdo um primo em segundo grau, filho de dois primos legítimos, raiz do meu chão mais verdadeiro, filho de um Rafael, numeroso de ideias e rasgos de inteligência, e de Elizabeth, madona de ternura e priora de santidade comum e cotidiana. O que me lembra o verso famoso de um poeta potiguar que devia ser famoso no mundo inteiro, chamado João Lins Caldas, que sentenciava: “Eu tenho um mundo de primos no mundo”. Todos nós somos descendentes de um tio que eu muito amei, avô de Armando. Seu nome era Manuel, que nunca foi aluno sequer do curso primário, mas era capaz de recitar Os Lusíadas, de maneira tão encantatória e eloquente, como se estivesse apostrofando de uma tribuna de júri. Vi-o, inesquecivelmente, quando eu era menino, e minha mãe me levou de Ceará-Mirim para passear em Mossoró, recitando poemas para um passarinho de sua criação e estima, parece que um concriz; recitando e dialogando como um devoto reza a Oração da Manhã. Tenho a impressão que aquela visão me encaminhou definitivamente para a Poesia.

Manuel Fernandes de Negreiros era seu nome todo; vivia como uma dessas árvores, poderosas e solitárias, que aparecem em meio ao deserto, capazes de receber tempestades e devolver raios. Era um homem de temperamento forte como só se via antigamente nos Negreiros, misturados aos Maia e Fernandes. Morreu de uma doença violenta, mas ele, com coragem e paciência, já domado pela prática habitual da Yoga, suavizava tudo e todos com encantamento, tanto foi que se tornou exemplar registro do grande mestre espiritualista José Hermógenes de Andrade, em um seu livro de testemunhos sobre os que mudaram a vida através da prática de paz e saúde que o Oriente tanto nos tem ensinado.

A vida deixou de pertencer aos desígnios de Deus; ao humor dos comediantes gregos e latinos; aos versos de Fernando Pessoa e Manuel Bandeira; às orações de João Paulo II e Chico Xavier; ao encanto dos ventos nordestinos e às auroras boreais; ao sorriso de Irmã Dulce e do amor aos leprosos, no quente coração da África, de Albert Schweitzer — a Vida deixou tudo isso, para pertencer unicamente a um senhor que ninguém vê nem pode tocar, intangível e incorpóreo, chamado Mercado. Esse Mercado tem uma filha chamada globalização e uma neta apelidada de corrupção, ou hedonismo, ou desaparecimento de valores antigamente chamados altruístas. Hoje, é conhecida apenas pela designação de “ausência total de todo valor que inspire e engrandeça o homem”. O resto é literatura. Literatura que pode ser definida também como cultura literária, escondida sob os arcanos desta Academia, construída com invencível amor, pedra sobre pedra, pedidos de humildade e fortaleza de sertanejo, de seu grande presidente, escritor Manuel Rodrigues de Melo, por quem e para quem, com saudade e reverência multiplicadoras, enviamos nosso mais puro pensamento de gratidão.

Esta noite sutilizou-se, rarefez-se, com a presença de tantas gerações, visíveis e invisíveis. Mas que tem, principalmente, a presença daquele que você chamava de “seu Rafael”. Chame-o agora. E peça que ele lhe vista a toga azul dos imortais. Ele, o menos imortal, e o mais generoso dos homens, sob o olhar diáfano de Elizabeth, do amor de Kátia, Carla e Bruna, da amizade dos seus irmãos, da ternura de suas tias Ivy e Maria Luzia, e do mundo de primos e amigos que você tem neste mundo.

E, ao final de tudo, senhor Presidente Diógenes da Cunha Lima: se real e belamente é como dissestes — que só o que passa, permanece —, pelo menos permaneça a alegria desta minha crônica familiar, menos discurso possível, e mais afetividade transbordante. E que o resto passe, passe mesmo.”

 

Armando Negreiros – Médico e Escritor
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

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