SE ÉS CAPAZ DE TE DEFENDERES… – Marcelo Alves Dias de Souza

SE ÉS CAPAZ DE TE DEFENDERES… –
Rudyard Kipling (1865-1936), em seu poema “If”, nos alerta: “se és capaz (…), de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes” e “a todos podes ser de alguma utilidade”; “tua é a terra com tudo o que existe no mundo, E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho”. Outro dia, de uma amiga (boa amiga, diga-se de passagem), não fui capaz de me defender. Antes que se pense outra coisa, devo deixar claro que o ataque que sofri foi essencialmente jurídico.
Na verdade, minha amiga, funcionária pública com formação na área de saúde (pelo menos, até aquele momento, era o que eu achava), indignada, reclamava do seguinte: ela era parte em um processo, que discutia uma questão jurídica já decidida várias vezes pelo Supremo Tribunal Federal no sentido do que ela pleiteava (num tal de “controle difuso de constitucionalidade”, ela dizia). Mas esse seu processo (ela continuava, quase se descabelando) tinha sido decidido, por um juiz da nossa capital dos reis magos, em contrário a esses precedentes do Supremo. E o que é pior: alguns colegas seus, em situação idêntica, tiveram suas demandas julgadas procedentes por outros juízes.
Bom, tentei argumentar, alegando o princípio do livre convencimento do juiz. Disse que, como não adotamos a teoria do precedente vinculante como regra geral, o sucesso do processo dela foi prejudicado pela azarada distribuição do feito àquele juiz, certamente “teimoso” em não seguir a jurisprudência do Supremo.
Ela, de logo, retrucou: “e vaidoso”.
E disse mais: “esse tal de livre convencimento do juiz pode até ser algo romântico, mas, levado ao extremo, é claramente contrário ao interesse público”. “Deve haver uma fórmula que impeça, na medida do possível, que a sorte dos litigantes fique condicionada à distribuição da ação a esse ou aquele órgão julgador ou, pior ainda, que fique ao sabor da vaidade ou da teimosia estéril do juiz de um caso”.
Sim, foi aí que passei a desconfiar da formação profissional de minha amiga. Teria ela uma segunda profissão que eu desconhecia?
Mas não me dei ainda por vencido. Tentei, em retorsão, explicar como funcionava o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos em nosso país, onde, convivendo ao mesmo tempo os modelos concentrado e difuso, historicamente temos um embate entre eles. Reconheci que o nosso controle difuso é capenga, pois, inspirados no exemplo americano, nós adotamos o seu modelo difuso de controle, mas sem adotarmos a doutrina do stare decisis. Nos Estados Unidos, as decisões no controle difuso são razoavelmente uniformizadas pela aplicação da doutrina, ao passo que, no Brasil, exatamente pela ausência desta doutrina, essa uniformidade não existe.
Nesse momento, fui interrompido bruscamente: “Marcelo, você não pode deixar de reconhecer que a multiplicidade de processos no controle difuso gera, comumente, decisões contraditórias, o que, dado a igualdade perante a lei, não é desejável. E o problema torna-se ainda mais grave quando essa contradição se dá em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pela guarda da Constituição”.
Já mais calma, em tom intimista, mas professoral, ela ainda disse (e aqui tive a certeza de que essa minha amiga escondia algo na vida): “querido, hoje, a multiplicidade de processos relativos à legislação tributária, previdenciária, administrativa, para ficar apenas nas mais palpitantes, requer mecanismos eficazes, sob pena de chegarmos ao total descrédito da Justiça por parte da população. Claro que não se deve, simplesmente, enfraquecer o papel dos juízes de primeiro grau; o que se deseja, para esses processos de massa, é um mecanismo para uniformização de suas decisões. A questão é que, para a obtenção disso, é absolutamente necessário, pela própria natureza das coisas, além do incremento do controle concentrado, que se objetive o controle difuso, quando já existe decisão do Supremo Tribunal Federal. Vocês, operadores do direito, devem saber que já está na hora de se reconhecer imperium erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal nos recursos extraordinários, sob pena de se verem gravemente comprometidas as elevadas funções deste tribunal e, o que é pior, do nosso sistema constitucional como um todo”.
E ela assim sussurrou: “lembre-se de que um dos objetivos principais da existência de uma corte constitucional (ou de um tribunal supremo que faça o papel de corte constitucional, como é o nosso caso) é afastar o risco de se ver determinada lei tida por inconstitucional por alguns juízes e tribunais e por outros, não. Se, segundo o princípio da supremacia da Constituição, o restante do corpo normativo de um país deve respeitar, formal e materialmente, o que é consagrado no texto constitucional, isso deve valer para todos. É uma consequência lógica, e ferir essa isonomia implicaria, no fundo, descumprir a própria autoridade da Constituição”.
Por fim, sorrindo, em tom quase lânguido, confidenciou: “eu soube que o Supremo já vem tratando disso”.
De minha amiga, parece, não me defendi muito bem. Mas será que, aqui, contando esse meu “causo”, fui de alguma utilidade?

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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