SEGUIR A ROTINA, DE PREFERÊNCIA –
Final dos anos setentas e início dos oitentas. No Hospital Dr. Luiz Antonio, Hospital do Câncer, na Avenida Mário Negócio, Bairro das Quintas, havia apenas uma sala de cirurgia. Dona Geralda tomava conta de tudo, limpava a sala, esterilizava o material, ia buscar o paciente, instrumentava a cirurgia e, às vezes, até auxiliava.
Os cirurgiões eram Ivo Barreto, Maciel Matias, Ricardo Curioso, Chagas Nunes, Marcos Arruda e Carlos Afonso. Fernando Medeiros estagiava como estudante, aliás, muito interessado. Faria especialização em Cirurgia de Cabeça e Pescoço e seria um dos diretores do Hospital. Partiu cedo vitimado pela própria doença que costumava tratar. Um grande amigo, excelente profissional que, embora tenha vivido pouco, soube fazê-lo intensamente, aproveitando todos os momentos com muita alegria, como se estivesse adivinhando a brevidade da sua existência. Presto aqui uma homenagem a esta grande figura, a Márcia, sua mulher, a Rostand e Camila, seus filhos. Anestesista era só um, este que vos fala. Depois viria Salete. Hoje é uma grande equipe chefiada por Sandra, cinco salas de cirurgia, vários cirurgiões, residentes e estudantes.
Certa vez, Ricardo precisava, urgentemente, de um auxiliar e só encontraram Roberto Sales, clínico, ex-diretor do hospital. Roberto, apesar da boa vontade, havia escolhido a especialidade certa, pois não tinha (como não tem) a menor aptidão para cirurgia. Mantinha uma postura esquisita, longe do paciente e com os braços levantados, como se estivesse rendido, o que lhe valeu o apelido de D. Baker, um dos maiores cirurgiões da época.
O diretor era Aluízio Bezerra. Era tão cuidadoso com as despesas do hospital que, certo dia, colocou uma observação na prescrição feita por um estudante que, ao final da assinatura, costumava fazer um serpenteado que consumia cinco ou seis linhas abaixo: avisar ao estudante fulano de tal para diminuir a cauda da assinatura, pois está gastando muito papel!
Rotineiramente o paciente chegava andando até a sala de cirurgia. Ao final do ato anestésico-cirúrgico, quando estava recuperado, voltava numa maca. Havia uma rampa para se chegar até as enfermarias, onde os pacientes ficavam internados. Para subir a rampa, Dona Geralda solicitava a ajuda de alguns funcionários.
Feita a isagoge (antelóquio, introdução, proêmio, prólogo) acima, entremos na história. O eminente e saudoso desembargador Túlio Bezerra de Melo, marido da querida professora Lúcia Ramalho, com quem tivemos a honra de trabalhar durante anos na Maternidade Escola Januário Cicco, estava para ser operado por Maciel Matias. Devido a um tratamento para câncer de próstata, havia desenvolvido ginecomastia e optara pelo hospital Dr. Luiz Antonio. Devido à notoriedade do paciente – desembargador – a rotina foi quebrada. E, todos sabemos, quando a rotina é quebrada nos procedimentos médicos, sempre ocorre um desastre. E, por cima, marido de médica – a famosa esmeraldite.
O Dr. Túlio, em vez de ser levado para a sala de cirurgia andando, como era praxe, foi levado numa maca, por dona Geralda. Ao chegar na malsinada ladeira (dizem que rampa é para subir), que dona Geralda estava acostumada a subir, mas não a descer, eis que a gravidade, com uma aceleração de 9,8 metros por segundo ao quadrado, puxa a maca com o Dr. Túlio ladeira abaixo e dona Geralda freando, com os pés travados, chegava a arrancar faíscas do cimento arenoso…
Por uma dessas coincidências eu acabara de chegar e corri em socorro conseguindo diminuir a desembestada velocidade da maca, evitando um trágico acidente. Dr. Túlio, embora procurasse manter a sua fleuma britânica, estava hipertenso, taquicárdico e com os olhos esbugalhados. Dona Geralda, em estado de choque, era cercada pelas colegas que, além de a abanarem, obrigavam-na a tomar a milagrosa garapa.
Tentando confortar o meu paciente, perguntei-lhe se estava tudo bem e se ele estava tranqüilo. O Dr. Túlio, calmamente, respondeu com a frase que sempre repetiríamos em todos os nossos encontros futuros:
– Desde que não tenha outra ladeira pela frente…