SENHOR TÃO BONITO –
Apesar de todos os conhecimentos gerais e instrumentos emocionais que adquirimos ao longo do tempo, vamos vivendo como se a vida fosse um rito traçado e terminamos tragados por sua rotina. Ou, talvez desatentos, nos entregamos a ela por boa dose de comodidade.
Poderia ter sido mais um final de semana comum, caso eu não tivesse saído da zona de conforto, abandonado minha boa dose de comodidade e aceitado o convite do amigo querido para ir a um hotel fazenda no sul de Minas. A metrópole, especialmente irascível naquela tarde, cobrou seu preço por não poder fugir dela mesma junto comigo. Por pura birra, me manteve imobilizado uma hora inteira para percorrer cinco quarteirões, naquele tipo de congestionamento medido em quilômetros pelas emissoras de rádio e tevê.
Enfim na Via Dutra, por onde não transitava há alguns anos, pude testemunhar a urgência da terceira pista, as irresponsabilidades de motoristas e motociclistas e nenhuma fiscalização contra imprudências e infrações cometidas com naturalidade pueril.
Mais adiante, subindo a serra na noite gelada, lembrei da velha canção em que as casas lá embaixo estão com frio e indicam a mão do poste velho para descer o barranco desfeito na luz.
Noite alta, vencida a estrada simples e sinuosa, surgiram os primeiros sinais de que a moeda da vida tem duas faces: mesmo com o restaurante do hotel já fechado, havia jantar quentinho aguardando no prato. Acolhimento de matar de inveja a metrópole agora distante, refém de si mesma, que ficou comendo sua própria fumaça.
Abrimos as primeiras garrafas, conversamos sobre quase tudo, trocamos ótimas experiências. Mais um pouco, teríamos resolvido metade dos problemas do mundo. Nada que uma bela noite de sono sossegado não recolocasse no lugar.
Fizemos caminhadas pelo ambiente espetacular da fazenda, encantados com a vida simples e saudável que habita o lugar. Ouvimos o relógio da matriz da cidadezinha nos informando hora a hora que o tempo ali passa um bocadinho mais devagar. E festeja o momento transcendental da Hora do Angelus com o som da Ave-Maria se espalhando mansamente, como um sopro de fé.
O enredo do encontro foi revelando seus personagens: o dono do hotel, mestre da fidalguia sempre inflamado na sua fraterna implicância com a espanhola de sangue quente, cujo marido é quem mais se diverte com a contenda.
O parente da cantora famosa abrindo sua prodigiosa memória que se confunde com a história ferroviária do país, ampliada pelas viagens em busca de locomotivas ao redor do mundo.
O homem criado nos encantos do campo, que mudou para o mundo urbano e continua apaixonado pelas sabedorias rurais.
A mulher que insinua segredos picantes em frases que ninguém consegue compreender, engraçadíssima na forma de não dizer coisa com coisa.
O velho amigo que me convidou, anfitrião do encontro, com sua tradicional nobreza, juntando pontos comuns com precisão de mosqueteiro, equilibrando tudo e compartilhando a delicadeza do seu amor de vida inteira com a grande senhora de múltiplos talentos.
E o garçom de inesgotável alegria, antigo na casa, contando ótimas histórias e dando dribles de mestre nos nossos chistes mais inspirados.
A enxurrada de vinho começou a revelar universos paralelos inacreditáveis, como o sistema de túneis que começa na adega camuflada para desencaminhar garrafas nobres, e interliga lugares tão distintos como São Tomé das Letras, Visconde de Mauá, a Planície de Gizé e Machu Picchu – exatamente na curva onde se chega depois de tomar o chá alucinógeno que ajuda a enfrentar a altitude, e que descortina a cidade perdida dos incas.
Houve quem jurasse que é esse chá que faz o viajante enxergar o tesouro arqueológico peruano, que ele não existe de fato, não passa de holografia ou milacria do tipo.
Outro, ainda mais estudioso, garantiu que o tal sistema de túneis serviu para transportar as pedras que ergueram as pirâmides do Egito e o monumento inca – inclusive o teodolito eletrônico que mediu o alinhamento milimétrico das janelas da cidade. O que a bebida não faz, meu Deus!
Rimos como há muito não fazíamos. Rimos de tudo, principalmente de nós mesmos – o que é ótimo sob todos os aspectos. Se cada gargalhada nos garante mesmo os tais quinze minutos a mais de vida, devemos ter ganhado, no mínimo, mais uns dias neste mundo. Dádiva que pretendemos comemorar com um lendário Porto 40 anos que, segundo informações sigilosas do serviço secreto português, está malocado no setor de vinhos alheios da adega dos túneis. Delicadamente subtraído do “esquecimento” de um incauto alcoolizado em outra ocasião.
Foram dois dias inesquecíveis naquele alto de serra. Chegou finalmente a tarde de domingo e a hora de ir embora. Conseguimos substituir a tristeza das despedidas pelo compromisso de nos encontrar de novo.
Saímos em carreata descendo a serra, até cair novamente na velha Dutra. Em alta velocidade, fomos nos separando dos parceiros que iam entrando nas cidades onde moram. Por ter escolhido viver em São Paulo, viajei mais um pouco e esbarrei nos milhares de carros do engarrafamento monumental na moderna rodovia alternativa que usei mais adiante para fugir da estrada famosa.
Foram dezenas de quilômetros em ritmo de tartaruga, tempo extra para pensar naquele encontro. Quinze pessoas; eu conhecia apenas cinco. Já não somos tão jovens. Já enxergamos a finitude. Falamos com orgulho de filhos e netos. Falamos de solidões e depressões que vivem à espreita. Falamos da nossa relação inexorável com o tempo, dos medos que assombram nosso futuro. Mas também revelamos planos e sonhos, ora bolas!
Tocou no rádio do carro a canção popular que faz oração ao tempo, esse senhor de tudo, tambor de todos os ritmos. Ousei desejar que aquele encontro ganhe brilho infinito, para que seja possível reunirmo-nos em outro nível de vínculo. É o que vale da vida.
Tempo, tempo, tempo, tempo. Senhor tão bonito que ajuda o meu coração a entender o compasso desse sentimento.
Para D’Artagnan, Valéria, Denise, Leslie, Marlene, Romulo, Neusa,
Jorge, Pilar, Carlos, Cristina, Alayde, Alessandra e Mateus
Heraldo Palmeira – Produtor Cultural
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