AB DIOGENES DA CUNHA LIMA

Diógenes da Cunha Lima

 Não furtarás. “A riqueza é boa para quem não tem a consciência pesada”. Eclesiástico 13.30.

 Um demônio fêmea chamado Lilith, antigo mito, representava o escuro da noite, simbolizada também pela coruja, e teria sido a primeira mulher de Adão, antes de Eva.  Esta diaba prostituta, sedutora de jovens, perigo para as mães, foi quem ensinou a roubar.

As religiões morais nasceram entre os judeus, os mandamentos preceituam uma ética social e individual.  Este mandamento – não furtarás – tem destinação pessoal e coletiva.

Crimes contra o patrimônio são cometidos sob o silêncio do comodismo e da covardia.  No Brasil tudo é grande, até o erro.   Furta-se o que se vê (coisa móvel) e o que não se vê (as criações do espírito, direitos autorais, arquivos e programas de computador, energia elétrica, com discursos inúteis que rouba-se até a paciência, os sonhos da juventude são também roubados).  José Nêummane, poeta maior, escritor, jornalista culpa a nossa omissão dizendo que há um “pacto do silêncio que acoberta o crime e ajuda a mantê-lo impune”.  Conclui: “Corruptos ou não, somos todos cúmplices”.

A humanidade ainda não inventou outra coisa para corrigir o crime que não seja o castigo.   Afinal de contas, só existe crime porque existe direito.  E o direito também promete castigo ao delinqüente.

Lutero (1483-1546) disse ser Moisés “um perfeito professor de leis”.  O cabalístico 7 enumera este mandamento.  São sete os dias da criação,  as sete pragas, o perdão por sete vezes, ou por setenta vezes sete.

Em missa de sétimo dia, louvava-se a virtude da honestidade e correção de um defunto, quando Emílio de Menezes (1866-1927) recitou: Quando ele se viu sozinho / Na cova, na escuridão, /  Subtraiu, de mansinho, / Os dourados do caixão.

A cleptomania, essa obsessiva neurose de furtar,  teria ultrapassado a vida.

Pior do que isso, e existe, é a cleptolognia que acomete pessoas que têm excitação sexual quando furtam, quando subtraem bens alheios contra a vontade do dono.

Nos países de alta evolução, diz-se isto é do Governo.  E todos têm respeito quase religioso.  Aqui se diz isto é do Governo.   E  isto é interpretado como: pode usar, abusar, e até destruir. Furtar do Governo têm que ser crime maior porque é furtar de toda a população.

Nas Ordenações Afonsinas, que regeram Portugal e o Brasil desde 1580, aqui até 1917,  havia um capítulo denominado  Dos Crimes que não têm Perdão.  Penso que devíamos restaurar o nome e a função antiga para os crimes hediondos.  Assim, não mereceriam perdão o seqüestro, o estupro, o abuso de crianças, a destruição dos bens públicos.

Em países muçulmanos, corta-se a mão dos ladrões, homens e mulheres.  Uma Surata do Alcorão prescreve a pena de mutilação da mão criminosa.

Há, todavia, furtos que não devem ser punidos, como o furto famélico, o do necessitado para não morrer de fome.  Existe ainda o costume de roubar galinha na véspera do sábado de Aleluia.  Seria para comemorar a ressurreição do Senhor.  Elimina-se o direito de propriedade: se Jesus morreu, tudo é permitido. Com sorriso, convida-se o amigo proprietário para festejar.  Contou-me Tota Zerôncio que era promotor e gostava de fazer brincadeiras com o juiz Manoel dos Santos.  Um dia, não se deu bem.  Ele reclamara que um preso mal tinha o que comer, o parente rico fazendeiro em nada ajudava.  O juiz deveria resolver o problema. Dias depois, o fazendeiro tem uma demanda e manda um peru de presente ao juiz.   Manoel recebe.  Chama Tota,  diz que cria perus e oferece aquele gordo peru mais barato.  Tota compra.  O dinheiro vai para a alimentação do preso.  No domingo,  Tota  manda chamar Manoel para o almoço festivo.   Respondeu: “diga a Tota que, nesta comarca, quem pode comer bola é o promotor…”

Havia também o rapto das donzelas.  Quem furtava moça, tinha que casar,  no padre ou no delegado.  Entretanto, o costume era um ato simbólico  e formal, evitava a solenidade do pedido, ainda que consentido o casamento.  O meu avô materno, Francisco Targino Pessoa,   contou-me que furtou a mocinha Olindina Ramalho, minha avó,  pela porta dos fundos da casa dela e entregou-a pela porta da frente.  Furtou,  consequentemente, teve o direito e o dever, de casar.

Os povos também furtam.  Quem observar as coleções de objetos preciosos, incorporados por guerra ao patrimônio de diferentes países, vai comprovar a afirmação.  Assim, no Museu Britânico, no Louvre, no Ermitage de São Petsburgo, os museus de Berlim.  São obras de arte subtraídas do mundo inteiro manu militari ou por outros meios que o direito romano conceituava de furtum, apoderar-se de coisa alheia com a intenção de lucro e por atos de subtração fraudulento.

As Liliths se multiplicaram, ou seus alunos de hoje estão superando a mestra?

Diógenes da Cunha Lima – Escritor, presidente da Academia de Letras do RN

 

 

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