SEXTA-FEIRA À NOITE – 

Na tevê passa um filme antigo. Esforço-me para me levantar do sofá branco, revestido em couro sintético, cheio de almofadas estampadas com bandeiras e imagens de alguns países europeus. A sala tem em seus móveis desenhos clássicos que se misturam com os objetos de decoração no estilo moderno e despojado, o contraste da decoração remeteu-me ao pensamento das misturas, combinações, variações, gostos e mudanças, em que estamos num constante juntar, desfazer, separar o novo com o velho, repaginando espaços, reconstruindo olhares, desde uma simples decoração de uma sala até as reconstruções de compartimentos do nosso ser.

Ainda sinto alguns “pesos”. Alguns fatos recentes trazem velhas lembranças. Descalça, piso no tapete felpudo da sala, sinto seus pelos acariciarem meus pés, amaciando um pouco da caminhada. Escuto atrás de mim algumas frases vindas da tevê, aquelas promessas proferidas no calor do desejo. Entro no meu quarto, vejo a tela do computador piscando, lembrando-me da última atividade realizada nele, ainda inacabada. Contabilizo alguns dias e noites sentada à mesa de trabalho, desenvolvendo um novo projeto. Confesso que tenho um pouco de resistência a escrever temas sugeridos, encomendados, essa roupagem me trava os voos pelo imaginário, pelos devaneios que a minha alma se acostumou a visitar. Gosto das metáforas, do exercício metafísico, de me embrenhar na metalinguagem traduzindo sentidos e sentimentos pela escrita livre e sem regras.

Sento-me na cadeira larga, “acolchoadamente” negra e moderna, de frente para o computador. Busco dar continuidade ao trabalho: prefácio de um livro. Sem sucesso, abro uma nova guia, procuro uma canção que possa me fazer relaxar, trazer alguma inspiração. Acesso o Youtube, “Meu mix” é o que desponta na tela, percebo que se trata de uma seleção das canções que eu mais ouço pela plataforma que costumeiramente me conecto. Como sugere o significado do termo YouTube, o site de compartilhamento de vídeos, esse é um “canal feito por você”. Resolvo clicar na primeira opção de vídeo: Corinne Bailey Rae – Put Your Records On (tradução: Coloque seu som para tocar), literalmente, coloquei o som para tocar.

A música agora preenche os espaços vazios do meu quarto, ouço tocar um soul contemporâneo, numa linda voz jovem e negra. Esqueço as horas que avançam na noite quente dos últimos dias de verão, acalento-me no calor dos pensamentos de quem ousa vestir o jeans rasgado, a camiseta dos Beatles e o tênis branco enquanto o outono não chega. Aumento o som e danço de frente para o espelho, fecho os olhos, levanto os braços e me permito deslizar pelo quarto, refletindo na letra da música…

“(…) talvez às vezes, damos mancadas, mas tudo bem
Quanto mais as coisas parecem mudar
Mais elas continuam as mesmas
Oh, não hesite

Garota, coloque seu som para tocar
Me diga sua canção preferida
Vá em frente, relaxe
Safira e jeans desbotado, espero que alcance seus sonhos
Apenas siga em frente, relaxe

Você se encontrará em algum lugar, de alguma maneira (…)”

Seguir em frente, é o que nos resta. Virar na próxima esquina, embarcar nos novos sonhos, levar na bagagem o croqui dos projetos antigos, refazer o rótulo da farofa, readaptar o roteiro, buscar novas receitas para temperar a proteína texturizada de soja, adocicando o ruído seco que estala nos dentes. Experimentar novas essências, misturar novas ervas, novos sabores, incrementar nas cores que colorem a esperança de dias melhores, dos dias de outono em que os ventos soprados do Sudeste espalhem as folhas nos jardins das saudades, pulverizando com gotas de bem querer o lacre dos novos temperos.

Entre velhos projetos há sempre novas descobertas. Afinal, “Você se encontrará em algum lugar, de alguma maneira”.

 

 

 

Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]

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