SOB A LEI DA CHIBATA –
No cabedal das experiências sociais, reinou absoluto o costume de se castigar e espancar os filhos, hábito exercido como um direito dos pais, respaldado pela recomendação salomônica: “Quem ama o filho, não lhe poupa a vara”, ou seja, o castigo corporal é parte integrante do zelo paterno, sendo, portanto, aceitável, permitido e incentivado. Durma-se com um barulho desses! A Bíblia é, sem dúvida, uma grande regra de fé e prática, porém tal consentimento, embora atribuído à louvada sabedoria de Salomão, teve que merecer um desvio, o reparo que a sociedade moderna, em boa hora, decidiu aplicar. Porque o castigo físico causa dor e muitos vêm (ou vinham) carregados de uma crueldade nem sempre percebida pelos punidores. Acredito que o sofrimento se estendia àqueles que não deveriam sentir prazer no espancamento dos filhos. Herdeiro e caudatário desses costumes, eu mesmo, tendo aplicado algumas severas palmadas nos meus, carrego comigo um arrependimento que gostaria de ter sentido em meus pais, ou melhor, em minha mãe, que era a única executora das dolorosas cintadas e pancadas que, à mão livre ou com robustas palmatórias, vergastava nosso couro desobediente e juvenil. O meu pai, por comodismo ou simples omissão, nunca levantou a sua mão para nos castigar; delegava o privilégio a ela, exigente e disciplinadora, cujo rigor era, às vezes, repreendido por um dos nossos vizinhos que, em nome da amizade, advertia quanto à severidade das punições. Apesar de tudo, Dona Olga era – e continuou sendo – profunda e eternamente amada pelos filhos.
Louvemos os tempos politicamente corretos de hoje, que têm criticado, punido e abolido várias práticas indesejáveis, que no passado eram comuns e aceitas como integrantes do processo civilizatório. Racismo, homofobia, intolerância religiosa e política faziam parte do repertório de desrespeitos às condições naturais ou às escolhas individuais e coletivas. A escravidão humana, prática da maioria das civilizações, foi um palco de horrores e atrocidades, quando, além da privação da sua liberdade, o escravo, alvo de humilhações e maus tratos, era forçado, sob o jugo do açoite, a servir aos injustos senhores arvorados da condição de proprietários das suas vidas e até das suas almas. O progresso e poder de muitas nações devem sua pujança ao sangue, ao suor e às lágrimas dos escravos de todas as etnias. A humilhação secularmente impingida à raça negra, por exemplo, protagoniza os maiores episódios desse teatro de maldades.
A insanidade que abriga outro absurdo é, sem dúvida, a manifestação da homofobia, uma forma brutal de repressão a uma sexualidade considerada não-natural, que impede – ou tenta impedir – os indivíduos de exercerem sua opção. À luz, principalmente da intolerância religiosa, algumas sociedades insistem em segregar e até punir aqueles que defendem a liberdade de escolha. São eventos que caracterizam o quadro de afrontas ao ser humano, perpetradas por grupos autoconsiderados legítimos ou superiores.
Apesar da conscientização e dos avanços, ainda sobrevivem mentalidades escravistas, grupos ereligiões intransigentes, que por erros de interpretação ou por seus próprios ditames, empregam meios escusos para subjugar os outros às suas próprias leis e costumes. Mesmo diante da evolução material e social da humanidade, não é raro perceber movimentos e atitudes de pessoas e instituições leigas ou religiosas, e pretensas e rançosas filosofias econômicas ou políticas desfraldarem bandeiras de intolerância e ódio, processando ostensivo desrespeito pelas pessoas e pelas conquistas que, com sangue e sofrimento, a humanidade conseguiu implantar. Devemos manter os olhos abertos para não sermos vencidos por aqueles que, na contramão do progresso, ainda intentam, sob todas as formas, manter os outros sob a desumana, odienta e dolorosa lei da chibata.
Alberto da Hora – Escritor, músico, cantor e regente de corais
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