SOBRE “MINHA FORMAÇÃO NO RECIFE”, DE GILBERTO AMADO –
Há livros que nos marcam profundamente. “Minha Formação no Recife”, de Gilberto Amado (1887-1969), é um deles. Li-o, por sugestão do meu pai, seguidamente a “Minha Formação”, de Joaquim Nabuco (1849-1910). E que me perdoem os admiradores de Nabuco, mas – e isso certamente tem um quê de pessoal – as memórias recifenses de Gilberto Amado me tocaram bem mais; respeitadas, claro, a universalidade e a cultura do autor de “Um Estadista do Império”.
Estilisticamente (linguagem fluente, sem pedantismos, coloquial às vezes) e no que toca às argutas observações feitas pelo autor, com total naturalidade, acerca de si e dos outros (e o inferno são outros, já dizia Sartre), considero “Minha Formação no Recife” uma obra-prima. Tenho na memória várias passagens do livro e uma, em especial, gosto de repetir de vez em quando (meus amigos sabem disso). É uma repreensão que Gilberto Amado fazia a um amigo poeta, que, “autor de versos extraordinários, rodeado de aclamações, gemia de raiva por ser pequenino de corpo”. Se a natureza lhe prodigalizara, entre milhões de pessoas, dons excepcionais, por que, exclamava Gilberto Amado, “em vez de dançar como Davi na frente dos exércitos, indiferente à chacota, chorava por não ser um Golias!”.
Mas, afora a naturalidade e a modernidade no estilo de escrever (afinal, no caso, Gilberto Amado escreveu mais de 50 anos após Nabuco) e essa perspicácia em sondar a alma humana (e a alma brasileira), penso que foi também o pano de fundo de “Minha Formação no Recife” que me encantou. A obra rememora os cinco anos que o autor passou, como estudante, na antiga Faculdade de Direito do Recife.
Essa quase bicentenária instituição de ensino é um dos dois mais antigos cursos superiores do Brasil, juntamente com a Faculdade de Direito de São Paulo. Fundada ainda no primeiro Império, em 11 de agosto de 1827, mesma data da sua congênere paulista, à época como Faculdade de Direito de Olinda, foi transferida para capital da Província de Pernambuco em 1854, com a consequente mudança de denominação. Hoje, conservando a tradicional denominação de Faculdade de Direito do Recife, está abrigada no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco.
A Faculdade de Direito do Recife, desde os seus albores e ainda durante o período de Gilberto Amado, funcionou não só como o grande centro para formação de bacharéis em Direito no Norte e Nordeste do país, mas também como uma academia de filosofia, ciências sociais, artes e, sobretudo, política e literatura. Nomes célebres de nossa literatura e história política, como o próprio Joaquim Nabuco, Castro Alves, Clóvis Beviláqua, Capistrano de Abreu, Graça Aranha, Aníbal Bruno e Pontes de Miranda, para citar apenas alguns, passaram pelos bancos da Faculdade de Direito do Recife, irradiando suas ideias, inovadoras e muitas vezes polêmicas, para todo o Brasil.
E é fundamental lembrar a famosa Escola do Recife, ponto luminar na história da filosofia brasileira, que girava em torno da Faculdade de Direito do Recife, que albergava boa parte dos grandes pensadores brasileiros da época (segunda metade do século XIX). Essa Escola constituiu-se um grupo de filósofos, juristas, sociólogos e homens de letras, pensadores em geral, capitaneados por Tobias Barreto (1839-1889) e Silvio Romero (1851-1914) que tentou produzir, por meio da adaptação dos referenciais europeus, sobretudo germânicos (especialmente Ernest Haeckel, 1834-1919), uma filosofia ou modo de pensar essencialmente brasileiro.
Nestes tempos em que, para muitos, só o que é ensinado no Sudeste do país ou mesmo no exterior tem valor, é sempre um alento ler e rememorar o quão bela é a história da Faculdade do Direito do Recife, eterna capital do “meu” Nordeste e de muitos de minha geração e de gerações passadas.
Eterna capital do “meu” Nordeste, pois ainda trago na lembrança as viagens que para lá fazíamos, em família, quase mensalmente, no tempo de eu menino. Recife das compras na Conde da Boa Vista, do Colégio São José das Dorotéias; Recife, sobretudo, da volta para Natal, na estrada, criança deitada no colo da mãe.
Recife, de certo modo, sempre foi para mim uma extensão de Natal. E – nestes tempos de longas travessias e retornos ansiados – confesso, quando me falam de Recife, que sempre me vem à mente uma observação de João Cabral de Melo Neto que adapto para Natal: quando estou no exterior, tenho saudade do Brasil; quando estou no Brasil, tenho saudade de Natal; mas, quando estou em Natal, não tenho saudade de mais nada.
Salvo, claro, das lembranças do tempo de eu menino e do sono sem culpa no colo de minha mãe.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP