SOBRE O JULGAMENTO DE NUREMBERG (III) –
Como prometido no artigo da semana passada, hoje conversaremos sobre o direito no filme “O Julgamento de Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”, 1961). Entretanto, por ora, faremos isso ainda misturando esse direito com o cinema, focando naquilo que costumo chamar de aspectos “jurídico-performáticos” de um filme.
Antes de qualquer coisa, devo dizer que “O Julgamento de Nuremberg” tem tudo o que se pode querer de um excelente “trial movie”. Grande parte da estória/história se passa perante uma corte de justiça em pleno funcionamento, com juiz, acusador, defensor, réus e testemunhas realizando suas performáticas peripécias jurídicas. E a dinâmica ali mostrada nos prende completamente a atenção. Aliás, não poderia ser diferente com a plêiade de grandes atores que, sob a direção de Stanley Kramer (1913-2001), desfilam sobre aquele palco (ops… tribunal), com destaque para Maximilian Schell (1930-2014), o advogado de defesa, que, por sua interpretação, ganhou o Oscar de melhor ator em 1962.
No que toca a essas personagens jurídicas, algo muito interessante se dá em “O Julgamento de Nuremberg”. A regra é que os juízes, como personagens da trama, tenham papel limitado em filmes de tribunal. Normalmente, eles são personagens passivos, com pequenas falas, deixando o protagonismo para a acusação e a defesa. Mas “O julgamento de Nuremberg” é uma exceção: o enredo do filme foca essencialmente no juiz pensativo e ponderado Dan Haywood, personagem de Spencer Tracy (1900-1967).
Outro aspecto talvez ainda mais interessante: do outro lado, no banco dos réus, também dominando o filme, está Ernst Janning, papel de Burt Lancaster (1913-1994), grande juiz e jurista, famoso, segundo é dito no filme, por haver “dedicado sua vida à Justiça – ao conceito de Justiça”. Ernst Janning, embora réu, mantém sua dignidade durante toda a narrativa. E, de fato, como apresentado no filme, uma figura solitária, de grande coragem moral, um anti-herói, Ernst Janning nos desperta certa simpatia.
Aliás, certa vez, após assistirmos a “O julgamento de Nuremberg”, meu pai me perguntou se a personagem Ernst Janning seria inspirado no grande jurista Carl Schmitt (1888-1985), cuja biografia ficou para sempre marcada por sua ligação com o regime nazista, tornando-se, a exemplo do que se deu com Martin Heidegger (1879-1976) na filosofia, um pensador estigmatizado. Não soube, nem sei até hoje, responder. Mas, para quem não sabe, afora seu engajamento pessoal na causa nazista (ao que consta, filiou-se ao Partido em 1933, tendo assim permanecido até o fim da Guerra, sem qualquer retratação posterior), pelo menos duas das obras mais conhecidas de Carl Schmitt, “A Ditadura” (“Die Diktatur”, 1921) e “O Conceito do Político” (“Der Begriff des Politischen”, 1932), tiveram considerável influência para fins de legitimação progressiva do regime instituído por Hitler. No mais, é tema para lá de controverso até que ponto vai o envolvimento de Carl Schmitt – ou, melhor dizendo, qual a influência do seu pensamento – com as condutas dos que, de fato, empreenderam os crimes praticados pelo regime nazista.
Ademais, ainda misturando direito e cinema, devo lembrar que filmes são produtos da imaginação. E os seus conteúdos são normalmente, em grandíssima parte, ficção. Mas há aqueles filmes que são baseados ou inspirados, com maior ou menor fidelidade, em histórias reais. Aliás, isso se dá com alguma frequência com os filmes de tribunal. É caso, por exemplo, de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”, 1960), sobre o qual escrevi, não faz muito tempo, aqui.
Esse é também o caso de “O julgamento de Nuremberg”. Aqui com um adendo: o grande componente histórico que cerca o filme também ajuda nesse sentido. Como anotam Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson (em “Film and the Law: the Cinema of Justice”, Hart Publishing, 2010): “Eventos históricos, que podem ser adaptados ou interpretados de textos preexistentes, são geralmente produtivas fontes para o cinema. Isso pode ser visto em um bom número de casos. A guerra tem sido uma base óbvia para a dramatização cinematográfica – veja-se a plêiade de filmes baseados na 1ª e na 2ª Guerras Mundiais – centrados tanto em campanhas como em outros aspectos militares, como prisões e prisioneiros de guerra. No que toca aos filmes jurídicos, os eventos da 2ª Guerra Mundial deram azo a ‘O julgamento de Nuremberg’ (‘Judgment at Nuremberg‘)”. No caso de “O julgamento de Nuremberg”, o filme chega a dramatizar casos/cenas que foram de fato relatados no “julgamento dos juízes” na Nuremberg pós-Segunda Guerra Mundial. Um deles, por exemplo, como lembra Paul Roland (em “The Nuremberg Trials: the Nazis and their Crimes against Humanity”, Arcturus Publishing, 2010), foi o caso de Leo Katzenberger (1873-1942), um comerciante judeu de sapatos, idoso, que teve suas lojas saqueadas e foi perseguido pelos Nazistas sob o Decreto de Arianização de 1938. Sem condições de emigrar, Katzenberger continuou a viver em um apartamento em uma de suas propriedades em Nuremberg. Em 1941, sua amizade com uma adolescente, Irene Seiler (1910-1984), foi denunciada como violadora das leis racistas que proibiam relações entre arianos e judeus. Esse senhor de 67 anos (à época), no julgamento, repetidamente negou qualquer relação sexual entre os amigos. A moça também. Mas seus protestos foram calados pelo juiz-presidente, Osvald Rothaug (1897-1967), que o chamou de “judeu sifilítico”. Resultado: Leo Katzenberger foi condenado à morte. E isso tudo, com boa dose de fidelidade, é exposto no nosso filme de 1961.
Bom, dito tudo isso, quero registrar, antes de terminar, que não são somente os aspectos “jurídico-performáticos” de “O julgamento de Nuremberg” que nos interessam. Também nos interessa a sua temática essencialmente jurídica. Entretanto, isso ficará para o nosso artigo na semana que vem. O último desta série, prometo.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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