SOCIEDADE GASOSA –
“Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.
Zygmunt Bauman
A morte do filósofo e pensador polonês Zygmunt Bauman, de origem judia e, por isso, vítima de perseguição eugênica por toda sorte de poder dominante, recrudesce a discussão sobre os fundamentos da sociedade líquida, um conceito de modernidade criado e defendido por ele, que desafia os ideólogos sociais e que se torna “sólido” quando confrontado com os rumos que a sociedade atual assume como reflexo de posicionamentos extremados, pontuais e efêmeros, que em nada contribuíram para a formação de um “ethos”, que contemplasse a estabilidade civilizatória e a diversidade que caracteriza o corpo social, fruto da tortuosa modernidade que o vitimou.
O pensamento de Bauman se embasa na constatação de que na sociedade moderna (pós-moderna) nada é sólido, definitivo; mas líquido, passageiro, transitório. O Estado, a família, os sistemas, os empregos, as comunidades e, em especial, os compromissos e acordos sociais são passageiros e só subsistem até uma nova ordem surgir, com propósitos igualmente líquidos e aumentam o grau de liquidez da sociedade, que se contrapõe aos conceitos de modernidade sólida com exemplos reais de condição humana sempre à deriva das grandes colheitas progressistas. O principal articulador de uma sociedade sólida- o Estado, que deveria ser o vetor de mudanças permanentes, se perdeu nas incertezas e instabilidades sócio-politica-econômicas e, de alguma forma, declarou o fim das utopias. Deixou a saudável prática do planejamento a longo prazo, onde buscaria a solidez das transformações necessárias ao concurso do tempo e passou a viver o imediatismo predatório e impulsivo com que se pauta as conquistas políticas e econômicas. Os grandes projetos sociais, atropelados pela autofagia de sistemas predatórios, deixou de ser objetivo e força social para se transformar em objetivos de corporações. O fim das utopias representa bem mais do que as dicotomias ideológicas do mundo moderno- esquerda e direita; liberalismo e socialismo, e seus resultados desastrosos para a produção de uma igualdade social significativa; representa o fim da capacidade de reflexão dos homens, instituições e corporações sobre os rumos que o mundo deve tomar para abrigar a sociedade em condições mínimas de permanência. A sociedade vive processos de plena desregulamentação, uma vez conduzida pelas leis impessoais dos mercados, que atocaiam atalhos, e se fecham no atingimento de objetivos claramente econômicos, o que causa forças sociais desordenadas sem anseios e objetivos coletivos. “Uma corrente de incerteza e insegurança guia o sujeito pós-moderno, que não tem mais referencial nenhum para construir sua vida, a não ser ele mesmo”, surge assim o egoísmo social, a grande marca dos nossos tempos e outro fundamento do conceito de sociedade líquida. O emprego, o principal instrumento de uma sociedade sólida, que propiciava a construção de projetos de vida, tornou-se volátil com a inteligência artificial e os sistemas que deveriam dotar o homem de capacidade de resistência à destruição do seu futuro- o Estado-educação, em especial no ensino superior, se perdeu no obsoletismo de plataformas programáticas. O produto desse sistema, a qualificação do homem para o aprimoramento do mundo, já não surte os efeitos tempestivos esperados e suficientes, e não se vê plataformas políticas eficientes que garantam a permanência do emprego, da forma como institucionalizado, em um futuro à porta.
“Bauman ainda utiliza a metáfora do caçador e jardineiro para simbolizar a era pré-moderna e moderna. Segundo Zygmunt Bauman, na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus. Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro assume que ordem no mundo, depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador”.
O que garante a estabilidade de papéis para caçadores e jardineiros é a permanência, a solidez de práticas que os permitam se identificar com o futuro. Não que se negue a importância do contínuo aprimoramento dos sistemas e processos, mas que se mantenha aberta a clareira de caminhos convergentes para que homens e corporações de busquem e se apoiem mutuamente, senão nada se tornará sólido. O comércio virtual é exemplo comum dos riscos que o emprego, e com ele a sustentabilidade dos homens, corre e se torna realidade a passos largos. Sob o ponto de vista do resultado econômico, a única forma de sustentação dos negócios, vale a pena se manter uma cadeia de livrarias, por exemplo, com um custo operacional significativo e a necessidade de manutenção de estoques que a qualifiquem no mercado, em detrimento de empresas como a Amazon, que atua fortemente no mesmo ramo de atividade, sem a necessidade da presença física no mercado e, por isso, capaz de oferecer preços mais baixos? Mas empresas como a Amazon representam o futuro, dirão os futuristas. É uma assertiva inquestionável, mas onde estão as condições de sustentabilidade do emprego se o Estado-Educação permanece preso a um passado alheio aos ventos desenvolvimentistas globais? Outra ameaça que se mostra real é o aprimoramento da informatização das instituições bancárias. Em breve, muito breve, as agências bancárias serão restritas às atividades de gestão e controle e mais empregos engrossam o saldo de uma sociedade ferozmente líquida. A indústria da construção civil já sinaliza que encomendará a obra pronta e funcionará apenas como montadora. As montadoras de automóveis para se preparam para entrar apenas com o “chão de fábrica” e terceirizar a produção e, como exemplo maior, os primeiros carros sem motoristas começam a entrar no trânsito experimentalmente. E o mesmo homem, que comemora o avanço dos processos e sistemas e que o incorpora a sua rotina, reclama da crise do emprego formal ou engrossa a crescente fila de desempregados e tudo adentrará no nebuloso mundo das estatísticas.
Para Bauman a sociedade líquida, que se impõe como realidade no mundo inteiro, ultrapassa o limite da ideologia e perpassa a realidade mundial que se reflete em um desordenamento no contexto da sociedade e seus fundamentos de sustentabilidade, com a prevalência desigual dos efeitos do capital que, aliado a outros condicionantes, a tecnologia (inteligência artificial) por exemplo, gera um desequilíbrio nas relações sociais e no garantismo das fontes de sustentação do homem, acinzentando o seu futuro, invertendo os papeis de caçador e jardineiro, e deixando exposta uma realidade de que o futuro deixou de ser produto de construção coletiva e passou a ser uma realidade corporativa, impositiva e desvinculada das efetivas necessidades sociais e da condição humana; e o futuro um cenário de insegurança insustentável. A voz de Bauman foi eloquente na denúncia da mais marcante das revoluções da história da humanidade, silenciosa em seu curso e gritante em seus efeitos ao aumentar o fosso da desigualdade de recursos na luta do homem em busca de um futuro disperso nas incertezas de uma sociedade líquida.
Se os efeitos donosos de uma sociedade líquida se fazem sentir nas sociedades estáveis, que buscam incansavelmente o pleno emprego, imaginem a devastação que causa nas sociedades fragilizadas, onde o Estado se desvirtuou do seu papel e se submeteu ao peso das circunstâncias, como a brasileira. Talvez, pelo nosso estágio avançado de deterioração institucional, estejamos vivendo algo próximo de uma sociedade gasosa, onde todas as oportunidades de futuro se esvaem na mais completa ausência de um modelo mínimo de Estado e no descaminho proposital das instituições de sua arcaica estrutura de poderes carcomidos pela ineficiência, comprometimento, regalias; onde os objetivos sociais e coletivos jamais foram buscados e as utopias, se existiram, são mortas; onde o futuro se esgota todos os dias. Qual a condição oferecida ao brasileiro médio, comum, de planejar o futuro? Não temos organização social, estabilidade econômica nem respeito institucional. Um pais que convive com o destempero de governantes despreparados, sem visão de futuro, sem estadismo, onde as decisões necessárias à sua instabilidade institucional, garantidora de um futuro difícil, mas possível; são tratadas como negociatas em todos os níveis e esferas, há tempos sem fim. O futuro do país há muito deixou as apreensões da liquidez social e tornou-se volátil. Se Bauman legou ao mundo grandes estudos sobre a sociedade líquida, o Brasil, talvez por falta de estudos e presença estadista, se queda submissamente às deformações de uma sociedade gasosa que os ventos das incertezas levam para longe, muito longe e em sentido contrário aos sonhos de um futuro para o brasileiro, para a sociedade, para a nação. E o gigante pela própria natureza sucumbe aos falsos ideólogos sociais e políticos que vendem um futuro de retóricas, uma vez que permanecem atados às pesadas amarras do passado.
Adauto José de Carvalho Filho – AFRFB aposentado, Pedagogo, Contador, Bacharel em Direito, Consultor de Empresas, Escritor e Poeta.
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