Nos últimos anos, nada foi tão bem reengendrado no processo de formação da opinião pública no Brasil do que a idéia do maniqueísmo, esse monstro de efeito devorador. Os tucanos, mais bem feitos e afeitos intelectualmente, riscaram os primeiros traços do novo demônio e os petistas, donos de rara habilidade em trabalhar na fronteira entre a verdade e a verossimilhança, acabaram de vestir a nova criatura. Agora, não se sabe a cara do bicho, mas é certo que a criatura devorou seus criadores.
E tudo aconteceu nesses últimos vinte anos: a soma de dois governos tucanos e três petistas, sob o manto da escamoteação da distribuição de renda. Dos primeiros nasceram os vales e dos outros, a sua soma, num âmbito inegavelmente mais amplo, com o bolsa-família. Cuidar dos desvalidos teria sido a busca justa da inclusão social contra a miséria, se o dever de estado não tivesse se travestido em jogo eleitoreiro, berço onde nasceu o maniqueísmo sem polos e que misturou partidos e governos.
O tucanato reinou oito anos como se fosse um generoso senhor de uma casa-grande capaz de distribuir as benesses com a riqueza produzida pela sociedade, e da qual se fez um novo feitor; e o reinado petista, na esperteza do populismo dissimulado, sistematizou as benesses transformando-as em símbolos do bem. Ser contra o PT é ser contra o bem e, assim, ficou fácil vestir os adversários, quaisquer que sejam eles, com a cara do mal, quando todos fazem parte do mesmo baile de máscaras.
O novo maniqueísmo, e desta vez tipicamente brasileiro, cresceu sob uma benevolência pouco arguidora de um ultrapassado e demorado jornalismo declaratório que contribuiu como se a verdade fosse unicamente fruto de declarações. Se a sociedade já pagava pela demora na adoção de um modelo de jornalismo voltado para a indagação em toda plenitude, como forma de buscar a verdade a livrar os fatos das versões oficialescas, veio o Ministério Público para assumir a tarefa de denunciar.
Houve um tempo em que os editores responsáveis, com seus nomes expostos no expediente dos veículos, respondiam perante a Justiça pelas denúncias sem fontes declaradas ou as suas provas documentais. Hoje, é uma instituição garantida pela Constituição que investiga, protocola e denuncia para só depois convocar os veículos de comunicação. Da função de denunciar, o jornalismo passou à função de divulgar o que lhe é entregue por escrito, com exceções que lhe consagram o bom ofício.
A denúncia jornalística, esgotada pela impunidade, deixou um vazio que acabou ocupado pelo Ministério Público e a intolerância coletiva consagrou seu papel. Nasceu um novo maniqueísmo, este agora a colocar nossas elites – antes blindadas pelo poder político ou financeiro – no mesmo patamar das pessoas comuns. É esse novo maniqueísmo, onde o MP é símbolo do bem e o corrupto símbolo do mal, o novo tribunal draconiano da Nação a execrar antes de julgar os agentes públicos e privados.
Vicente Serejo – escritor e jornalista