UM BOND ALTERNATIVO

​Comemoramos em 2023 os 70 anos de Bond, James Bond. De fato, foi em 1953, em plena Guerra Fria, que o escritor britânico Ian Fleming (1908-1964) nos apresentou o seu agente secreto 007 – que se tornou “nosso”, de todos os amantes das letras e, sobretudo, do cinema. “Cassino Royale” é o romance de estreia, embora não seja o primeiro título a rolar na grande tela. No cinema, a primazia fica com “Dr. No”, filme de 1962, baseado em romance homônimo de 1958.

​Para celebrar a data, os herdeiros de Ian Fleming, que ainda guardam os seus direitos autorais, decidiram publicar novas edições dos livros de Bond, cujo cânone é composto por doze romances e dois livros de contos. Maravilha! Em princípio…

​O problema, como informa Christine Lehnen, da Deutsche Welle, em artigo publicado em várias mídias do país (G1, Uol e até num certo O Sul, que não conhecia até ser apresentado por um amigo leitor voraz), é que essas novas edições virão um tiquinho diferente. A linguagem considerada racista – e, por conseguinte, ofensiva – será expurgada das páginas de Fleming. Um expurgo suave, prometem família/editores, ficando tudo o mais próximo possível do original e da época em que os romances foram escritos e originalmente publicados. Maravilha! Em princípio…

​De fato, a coisa – falo dos expurgos realizados nas novas edições – já gerou debates.
​Primeiramente, há a questão em si da alteração do original. Se para pior ou para melhor (e acredito que a intenção aqui foi “melhorar” o texto), o fato é que “buliram” no texto de Fleming. Texto esse que deve sempre ser lido e sopesado – e criticado, por óbvio – levando em consideração as circunstâncias da época.

​Ademais, no Reino Unido, fala-se até em censura à obra de Fleming. Não acho que seja tecnicamente o caso, afinal as demais edições dos romances de James Bond, inúmeras, fiéis aos originais, continuarão a circular por lá, produzidas, vendidas, emprestadas e lidas, como de praxe. A nova edição de que falamos é apenas um Bond alternativo.

​De toda sorte, Christine Lehnen nos traz uma observação bastante interessante sob o ponto de vista do tratamento igualitário às demais visões de mundo: “Enquanto para alguns as mudanças planejadas vão longe demais, para outros elas não são suficientes. O jornal britânico Independent apontou que, embora a representação de pessoas negras seja alterada, a linguagem condescendente em relação às figuras do leste asiático e da Coreia permaneceria. Descrições misóginas e homofóbicas também continuam no romance, informou o jornal britânico Daily Telegraph, incluindo comentários como ‘o doce cheiro de estupro’ ou a descrição da homossexualidade como uma ‘deficiência teimosa’”. E há ainda coisas mais sutis, como o sex appeal de Bond, visivelmente dominante (ou mesmo sexista) em relação às mulheres – em especial para com as belíssimas Bond Girls –, que, devemos assumir, faz parte do seu “charme” e que seria muito difícil de se expurgar da obra sem desnaturar a própria coisa.

​O Reino Unido tem dessas coisas. Eu mesmo já fui “vítima” de uma espécie de pegadinha na busca por um dos títulos mais famosos da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), “Ten Little Niggers”, de 1939, cujo versão em português, lida na minha adolescência, chama-se “O caso dos dez negrinhos”. Ele ganhou ares de obra polêmica em tempos do politicamente correto. A questão aqui está mais no título, é verdade, e menos no seu conteúdo, que também teve de ser ligeiramente alterado, o que causou a indignação dos defensores da liberdade de expressão. Inspirado em antiga canção inglesa/americana, o título foi considerado racialmente ofensivo e teve de ser mudado (sob pena de não ser mais indicado em escolas, universidades, etc.), primeiramente, nos EUA e, em seguida, no Reino Unido, para “And Then There Were None” (tendo sido ainda adotados os títulos “Ten Little Indians” e “The Nursery Rhyme Murders”).​

Na verdade, acho que o mundo inteiro (o mundo ocidental, pelo menos) tem dessas coisas em tempos do politicamente correto. Acho uma preocupação válida. Crucial, aliás. Mas também perigosa se tratada sem cuidado. Afinal, como alertado em “120 Banned Books: Censorship Histories of World Literature” (Checkmark Books, 2011), de Nicholas J. Karolides, Margaret Bald e Dawn B. Sova, “por séculos, livros têm sido banidos, suprimidos e censurados por razões políticas, religiosas, sexuais e sociais, segundo os gostos e as crenças de uma era particular ou de uma localidade”. E isso é bem mais do que perigoso.

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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