UM DETETIVE À FRANCESA –
Que me perdoem os fãs de Edgar Allan Poe (1809-1849) e de seu detetive Auguste Dupin, mas, para mim, o detetive mais “à francesa” que a ficção policial já produziu foi o inconfundível Comissário Jules Maigret, pela pena do escritor belga (nascido em Liège e de língua francesa) Georges Simenon (1903-1989).
Reconheço, claro, a vanguardia e a engenhosa capacidade de desvendar crimes e mistérios do protagonista de “The Murders in the Rue Morgue”, “The Purloined Letter” e “The Mystery of Marie Roget”. Mas cheguei a essa conclusão ao assistir, durante este mês de fevereiro (e mesmo no carnaval, quando do necessário descanso da folia), no canal de TV por assinatura Eurochannel, a alguns filmes (especialmente produzidos para a televisão) em homenagem à personagem criada por Simenon, com o ator Bruno Crémer (1929-) no papel principal. Aliás, merece especial registro a interpretação de Bruno Crémer, realçando com perfeição as peculiaridades de Maigret, seu jeito ao mesmo tempo taciturno e compreensivo, sua empatia pelo ser humano (até os mais bizarros tipos) e sua queda pelo cachimbo.
Georges Simenon e o Comissário Maigret são, de fato, personalidades interessantíssimas. Simenon, primeiro de tudo, foi um escritor de uma fecundidade ímpar, publicando centenas de romances/novelas, utilizando inúmeros pseudônimos ou com seu nome verdadeiro. Com certeza, está entre os cinco escritores de língua francesa mais traduzidos no mundo todo. Boêmio, de vida faustosa, foi tido por uns como colaborador dos nazistas quando da ocupação alemã em França, na Segunda Guerra Mundial. Para outros, era um aproveitador ou mesmo um indiferente, que nunca denunciou ninguém, mas também nunca se engajou na resistência.
De todas as criações de Simenon, foi o Comissário Maigret, sem dúvida, a personagem que o consagrou. Foram, no total, 103 “Maigrets”, sendo 75 romances/novelas e 28 contos, iniciando-se a longa série com “Maigret Pietr-le-Letton”, em 1931, para terminar com “Maigret et Monsieur Charles”, em 1972. É dito que Simenon não estudava os procedimentos da polícia judiciária francesa para os seus Maigrets, muito embora tivesse certa experiência nesse campo, pois trabalhou como repórter forense na juventude. Sua abordagem é essencialmente literária, com Maigret absorvendo a atmosfera do local do crime, as peculiaridades das condutas dos envolvidos e buscando entender a psicologia dos suspeitos e criminosos. Maigret – definido pelo seu criador como um homem grande, que come e bebe muito e segue seus suspeitos pacientemente – é um detetive com um senso de justiça peculiar, eventualmente encobrindo a verdade. Maigret é um herói definitivamente humano, para quem, às vezes, não há culpados nem inocentes, apenas culpas a serem expiadas.
O fato é que Simenon foi um conhecedor da vida, em especial da vida parisiense (embora alguns dos seus melhores enredos se passem na província), com seus cafés, brasseries, bistrôs e comércios menos recomendáveis, já que também amante de mulheres de vida mais fácil ou difícil. Era aí onde ele encontrava suas personagens, sejam elas respeitáveis damas da sociedade ou mesmo a gente pobre da rua. Segundo um livro extremamente interessante, “Writes in Paris” (Counterpoint/Berkeley, 2008), de David Burke, que explora a Paris habitada pelas mais diversas personalidades literárias, são 77 os títulos protagonizados por Maigret ambientados em Paris. Simenon é, assim, um dos grandes exploradores da Cidade Luz. De Montmartre a Montparnasse, das residências burguesas aos subúrbios da classe trabalhadora, poucas esquinas de Paris não foram objeto do escrutínio de seu Maigret.
Para aqueles ligados ao direito e amantes de Paris, há, por fim, uma curiosidade especial. É numa das alas do Palais de Justice, em Paris, precisamente no número 36 do Quai des Orfèvres, que está o quartel-general da Polícia Judiciária do inspetor Maigret, “la mansion”, como chama a personagem. Uma placa ali aposta, aliás, reconhece a fama que o detetive de Simenon trouxe para o endereço, fama que, de tão sedimentada no imaginário dos leitores, faz com que a esse endereço sejam enviadas muitas correspondências cujo destinatário não é outra senão o Comissário Maigret.
Em tempos como os nossos, em que viajar de avião, mesmo para o exterior, se tornou mais barato, será que não vale a pena ir a Paris e pagar uma visita ao local? Para visitar o Palais de Justice – um dos mais belos edifícios de Paris, com sua linda fachada e o seu Salão dos Passos Perdidos (Salle des Pas Perdus) – certamente que sim. Penso que também ao número 36 do Quai des Orfèvres, em seguida. Afinal, quem sabe, não esbarramos com o Comissário Maigret por ali?
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP