Naqueles começos dos anos setenta já ouvia meu Transglobe. No modelo antigo e feioso, nove faixas, capaz de ouvir as rádios mais distantes do mundo. Por isso era fácil sintonizar a rádio Olinda e ouvir Dom Hélder Câmara. Pareciam crônicas, mas lidas com sua voz marcante em tom de conversa, os textos caiam nos ouvidos num pastoral a cada manhã que nascia. Seu jeito humilde de pregar a fé, ele que, para desespero da ditadura militar era, como disse Hermilo Borba Filho, o camarada de Deus.

E o programa tinha um belo título para quem, do alto da Sé, olhava aquele mundo de Olinda – o casario se derramando até o mar: ‘Um Olhar sobre a Cidade’. Em 1976, o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, a editora de ‘livros subversivos’, lançou uma seleção dos textos de Dom Hélder com o mesmo título do programa de rádio. Teve o cuidado de não registrar na ficha catalográfica como ‘crônicas’. Seria profano. Mas como ‘Literatura Devocional’, tal a sua grande devoção pela liberdade.

O livro morou em todas as estantes da minha geração. Na minha mora até hoje, encadernado por Seu Bandeira para esconder o que nos velhos alfarrábios os livreiros chamavam de ‘sujidade do manuseio e do tempo’. Uma convivência que longe de ser a mais antiga neste lugar de livros velhos, risca na alma os caminhos de admirações vividas. E se o silêncio humilde desta casa fosse de glória, seria tombado como patrimônio do espírito, com a sua nobreza estampada em sinete na folha de rosto.

Dom Hélder foi o divisor no movimento católico do Nordeste. Símbolo da doutrina social que fez da Igreja a trincheira de resistência pacífica e sem medo. Não foi à toa que João Paulo II, na visita ao Recife, ao ser recebido no desembarque pelos bispos nordestinos, encontrou D. Hélder Câmara na fila, ajoelhado, num grande gesto de humildade. O Papa, que lhe condenara ao silêncio obsequioso, ergueu aquele homem franzino pelos braços e beijou seu rosto como a pedir perdão em nome de Deus.

Numa das mensagens do seu olhar sobre a cidade, D. Hélder fala sobre a grande simbologia dos sinos. Mas, antes de chegar a tocá-los, e de ouvi-los de perto como a escutar voz que lhe sai do bronze a banhar as cidades nas horas do anoitecer, lembra que ficam sempre no lugar mais alto das torres. E que para chegar até a seus campanários, mesmo os mais humildes, avida que é preciso subir a escada íngreme para ser, como ele era, um sineiro das almas dos vivos e dos mortos no mistério sublime da fé.

Isso tudo, Senhor Redator, essas lembranças todas, num sábado assim, e sem motivo nenhum, foi só porque no dia de Natal fui visitar minha mãe que agora passou a morar num edifício na esquina da Hermes da Fonseca, no alto do décimo-primeiro andar. E ouvi, por coincidência, quando o sino da igrejinha do Padre João Maria, no Alto do Juruá, tocou as Trindades do Anoitecer.  Na sua humildade, derramava o sinal da fé, como no tempo das velhas aldeias. Anunciando a todos a presença de Deus.

Vicente Serejo é jornalista e escritor

Ponto de Vista

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