VERDES VALES –
No começo do século XX, no pequeno vilarejo “Verdes Vales”, onde morava, Toni, um trabalhador de mina de carvão, agora com mais de cinquenta anos, em lágrimas, se preparava para deixar sua terra natal para sempre. Sentia-se decepcionado com a vida, pois todas as pessoas que conheceu e amou estavam mortas ou haviam se mudado dali.
Ao juntar seus poucos pertences, na cesta em que sua mãe costumava trazer as compras da feira, jorraram da sua memória, lembranças de sua infância, quando a fuligem do carvão, extraído das minas, ainda não havia destruído o verde do seu vale.
Nos primórdios do capitalismo, a precariedade das condições de trabalho e o amadurecimento da consciência operária tiveram sérias consequências.
Passavam pela lembrança de Toni, centenas de mineiros deixando a mina, depois de passar pelo caixa e receber a paga da semana. Eles desciam pela rua, margeada por muitas casas conjugadas, todas iguais, cuspindo fumaça pelas chaminés. Ali havia uma fábrica com vila operária, coisa muito comum em situações em que o empreendimento capitalista se estabelecia num vale verde, distante dos centros urbanos. O dono precisava garantir suprimento de força de trabalho.
Toda a família de Toni era de mineiros. O pai, Gildo Moura, e os 5 irmãos adultos estavam entre as centenas de operários, que desciam a rua, em direção à mina, ao amanhecer. No fim do dia, a mãe, Dona Dulce, os aguardava na porta de casa, como também as esposas dos outros mineiros. Ao avistar o marido e os filhos na multidão, a mulher sentava-se num banquinho, estendia o avental e recebia nele o dinheiro que traziam. Aparentemente, ela era a guardiã da renda familiar, mas, na verdade, a poupança era controlada também pelo marido. A sobrevivência da família dependia do dinheiro do pai e dos 5 filhos.
O irmão mais velho se casou com uma bela jovem, Margarida, e houve uma grande festa, com muita comida e bebida.
No dia seguinte, os operários foram surpreendidos por um aviso, afixado na porta da fábrica, de que a paga por turno seria reduzida. Houve revolta e protesto, mas Gildo Moura, o porta-voz dos operários, pai de Toni, convenceu a todos ignorar o aviso e trabalhar normalmente.
O vilarejo vivia em função da mineradora, que empregava todos os seus homens. Os mineiros não tinham sindicato; apenas o porta-voz, que levava as reclamações ao patrão. Todos confiavam em Gildo, por ser o mineiro mais velho e mais experiente.
Ao chegar em casa, o pai encontrou os cinco filhos com os ânimos acirrados. Informaram-lhe que o corte de salário era decorrente do fechamento de uma mina próxima, e por isso tinha gente querendo trabalhar por qualquer preço. O pai perguntou aos filhos onde iriam arranjar poder para pressionar o patrão, e o mais velho, Ivo, respondeu que teriam que fundar um Sindicato.
Contrariado, o pai perguntou de onde eles tinham tirado essa ideia socialista. E deu por encerrado o assunto. Não houve diálogo entre pai e filhos, tendo em vista os valores tradicionais.
A mudança nas relações trabalhistas, dos mineiros com o dono da mina, ocorreu como num passe de mágica. De repente, estabeleceu-se a crise, com o corte da metade dos salários, o que causou uma revolta geral, exceto por parte do porta-voz. Ele ainda acreditava na generosidade do patrão, até que o homem fez valer o despotismo do mercado, reduzindo os salários, em função do aumento da oferta da mão de obra na região. E o pior: Puniu o porta-voz, por ter ido apresentar-lhe a reclamação dos operários. Colocou o velho mineiro para trabalhar ao relento, sob a chuva pesada, contando os carrinhos de carvão que saiam da mina. Isso revoltou a todos, principalmente aos seus 5 filhos mineiros.
No jantar, eles disseram ao pai que a punição fora injusta, e que ele morreria, quando chegasse o inverno. Mas, o velho e orgulhoso pai os proibiu de usar sua situação humilhante para “fazer política”. Ainda insistiu em dizer que confiava no patrão e que tinha certeza de que nenhum dos antigos mineiros seria demitido.
Houve uma grande tensão entre pai e filhos, vindo à tona valores tradicionais, como também a impessoalidade das relações de trabalho, agora mediadas por um sindicato, sob o jugo do mercado atual. A tensão resultou no abandono do lar pelos cinco filhos, na mesma noite. Apenas ele, Toni, o caçula, permaneceu com os pais.
No dia seguinte, os operários entraram em greve, liderada pelo Sindicato, cujos dirigentes permaneciam na clandestinidade.
Transcorridas várias semanas, sem que se resolvesse o problema salarial, a situação começou a provocar discórdia entre os operários, em razão da fome e do desespero. A maioria se voltou contra o velho Gildo, o porta-voz, por ter se posicionado contra a greve. Uma reunião sindical foi convocada, para discutir a punição a ele, mas sua esposa, Dulce, acompanhada de Toni, o filho caçula, foi até lá e ameaçou de morte aquele que fizesse alguma coisa contra seu marido.
Na volta para casa, ela e o filho caíram num rio. Os mineiros escutaram os gritos de socorro e vieram retirá-los. Toni perdeu os movimentos das pernas. O prognóstico foi de que passaria dois anos sem andar. A mãe também ficou de cama por alguns dias.
O infortúnio inesperado acabou reaproximando pais e filhos e também a família do resto do coletivo operário. Mais uma vez, a tradicional solidariedade aproximou os que se haviam dividido na greve.
A greve terminou depois de meses, e só pôde durar tanto, em razão do sindicato e seu fundo de greve. Na verdade, greves longas eram típicas dos primórdios do sindicalismo, quando a intransigência patronal testava os limites da resistência operária, através da fome e do desespero. E depois, por meio de retaliações aos grevistas.
Os trabalhadores voltaram ao trabalho, sem a alegria de sempre. Nem todos conseguiram passar pelo portão da mina. Os que ficaram de fora descobriram que não haveria mais trabalho para eles no vale. Dentre os que ficaram de fora, estavam os dois membros mais jovens da família de Gildo.
Os dois, então, comunicaram à família que iriam se mudar dali, à procura de trabalho. E ao anoitecer, deixaram a casa dos pais.
Toni voltou a andar, e se preparou para prestar exame para a escola pública nacional. Foi aprovado e teve ótimo desempenho, classificando-se para a universidade. O pai perguntou-lhe se queria ser médico ou advogado. e para seu desapontamento, o rapaz escolheu trabalhar na mina e ficar no vale com a família.
Pesou em sua decisão, um grande acidente na mina, no qual mais de 100 mineiros ficam presos, e entre os mortos estava o irmão mais velho, Ivo, o líder sindical.
Houve uma grande decadência nas condições de vida do vale e nas condições de trabalho na mina. Operários experientes foram substituídos por crianças e adolescentes, ganhando um décimo dos adultos, cujos salários já estavam baixos, em razão do desemprego nas regiões vizinhas. E receberam o aviso de que seriam substituídos por pessoas que aceitassem salários menores. Muitos resolveram emigrar, à procura de melhores condições de vida.
Outro grande acidente veio, de novo, comprovar que o trabalho na mina é perigoso e fatal. Desta vez, matou o patriarca Gildo Moura, cujo corpo foi recuperado pelo filho Toni e outros colegas mineiros.
Cansado de decepções, e sentindo-se vencido, Toni relembra a tragédia de sua família, mais de 30 anos depois, após idas e vindas ao vale. Desta vez, ele diz e repete para si mesmo, que está saindo para nunca mais voltar, já que todas as pessoas que amou ou conheceu já tinham morrido ou se mudado. Só lhe restavam agora as recordações de um tempo feliz, quando todos estavam vivos e quando o seu vale ainda era verde.
O cenário da cidade operária de Verdes Vales era, agora, o de uma cidade empobrecida e totalmente deteriorada, pela incessante emissão de fuligem das chaminés carvoeiras, asfixiantes e opressivas.
Violante Pimentel – Escritora