A VIDA DE NAPOLEÃO POR ELE MESMO –
Alguns personagens da história, seja por algum tipo de empatia ou mesmo por aversão, têm despertado a minha curiosidade ao ponto de tornar-me uma espécie de coletor (não um especialista, claro) de dados sobre suas vidas. É o caso de Napoleão Bonaparte (1769-1821), general e imperador dos franceses.
Certamente por isso, há alguns dias, uma amiga perguntou se eu possuía e poderia emprestar-lhe a Biografia de Napoleão por Max Gallo (Casa Jorge Editorial, 2003). Provando meu amadorismo, disse que não tinha esse livro. Entretanto, imediatamente, lembrei-me de um livro que, penso, foi causa determinante de meu interesse pela vida e pelas obras de Napoleão Bonaparte: “A vida de Napoleão por ele mesmo” (Siciliano, 1995), de André Malraux (1901-1976). Prometi, entusiasmado, emprestar-lhe o livro.
“A vida de Napoleão por ele mesmo”, interessantemente, é construída a partir dos próprios escritos de Napoleão, selecionados e romanceados, com perfeição, por André Malraux. E aqui a providência faz juntar duas brilhantes personalidades: a do próprio Napoleão e sua visão dramática, surpreendente e, às vezes, revoltante da história (mas, sobretudo, uma visão verdadeira, do seu ponto vista); e a personalidade de André Malraux, gênio das letras e da cultura francesas, mas, ao mesmo tempo, homem de ação em tempos sombrios, participante ativo da guerra civil espanhola e da resistência francesa na 2ª Guerra Mundial. O livro não é um Memorial de Santa Helena pelos prismas da extensão e da completude, mas, a meu ver, é uma obra-prima em termos de conteúdo e de estilo.
Para aqueles ligados ao Direito, há passagens interessantíssimas. Por exemplo, registra os questionamentos de Napoleão, ainda na Campanha do Egito, acerca da jurisprudência e da ordem judiciária civil e criminal local. Anota suas críticas ao Legislativo francês, distante do povo no período do Diretório. No que toca ao direito de família, reflete sua preocupação em incluir o divórcio na legislação francesa (sem, contudo, incentivá-lo) e a livre escolha dos nubentes para fins de matrimônio.
Estranhamente, entretanto, nada há acerca do seu célebre Código Napoleônico ou Code Civil des Français, de 1804, para muitos o maior legado de Napoleão, superando suas reformas nos sistemas financeiro e bancário francês, no transporte público e na educação, cujas linhas mestras até hoje subsistem. Anteriormente ao Código Napoleônico, a França não possuía um corpo de leis civis único, dependendo, muitas vezes, de costumes estabelecidos, que, normalmente, consagravam privilégios para a nobreza. O objetivo do Código Napoleônico foi, precisamente, reformar o sistema legal francês de acordo com os princípios da Revolução Francesa, de igualdade, fraternidade e liberdade (ao Código Civil, seguiram-se outros, como o Comercial, Penal etc.). O Código, acessível a um público mais amplo, foi um passo fundamental para se estabelecer a prevalência da lei sobre o absolutismo. E embora não tenha sido o primeiro código criado, é considerado o de maior êxito, pois, além dos seus méritos intrínsecos, influenciou os sistemas legais de diversos outros países. Ele foi, por exemplo, adotado nos países sob ocupação napoleônica, formando as bases dos sistemas legais da Itália, Holanda, Bélgica, Espanha, Portugal e suas antigas colônias (o que inclui o Brasil); além, claro, de outros países – como Alemanha, Áustria e Suíça – que seguiram o exemplo e realizaram suas próprias codificações.
De toda sorte, o que mais me encanta no livro é o próprio personagem Napoleão, como o título sugere, visto por ele mesmo.
Primeiramente, o Napoleão Bonaparte, “filho da Revolução” e grande vencedor de Austerlitz, que Afonso Arinos de Melo Franco, em “Amor a Roma” (Nova Fronteira, 1982), afirma, com razão, ter sido o último semideus que a humanidade produziu, “o último governante que procurou e conseguiu divinizar-se, à maneira de Alexandre da Macedônia, Júlio César ou Augusto”; os que vieram depois (de Gaulle, Churchill e outros) não passaram da categoria de super-homens.
Esse Napoleão semideus, por exemplo, está retratado em passagem, após a vitória na batalha de Marengo, que afirma: “A morte não é nada; mas viver vencido e sem glória é morrer todos os dias”. Ou quando diz: “A amizade é apenas uma palavra: não amo ninguém. (…). Quanto a mim, pouco importa; bem sei que não tenho verdadeiros amigos. Enquanto eu for o que sou, farei tantos quantos quiser, em aparência. (…). É preciso ser firme, ter o coração firme; do contrário, não convém meter-se com guerra nem com governo”.
Todavia, há também o Napoleão mais humano. Aquele que reconhece que “as verdadeiras conquistas, as únicas que não trazem pesar algum, são as feitas sobre a ignorância”. E há ainda o Napoleão extremamente humano, posto que, como todos nós, fraco e impotente. Relembro, de memória, a passagem em que ele é comunicado, durante uma campanha, por um dos seus generais, dos rumores de infidelidade de Josefina em Paris. O Napoleão, aqui alquebrado, que apenas diz que daria tudo, toda sua glória, para que isso não fosse verdade.
Mas é o epílogo da vida de Napoleão, narrado por ele mesmo e romanceado por André Malraux, se corretamente interpretado por nós, que nos apresenta a melhor lição: a visão da nossa pequenez neste mundo. Afinal, se a inóspita ilha de Santa Helena foi o derradeiro lar, em vida, daquele que a história parece ter consagrado como o último semideus, o que não pode se dar com aqueles que apenas arvoram, injustificadamente, o status de semideuses?
Para aqueles que acham que vivem uma Austerlitz, lembremos que um dia, certamente, virá a sua Waterloo.
Espero que minha amiga devolva logo o livro. Acho que vou fazer várias cópias e distribuí-las por aí.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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