VIENA, MÚSICA E UM POUCO DE DIREITO –
Decido escrever minha crônica desta semana sobre um livro que leio e me fascina: “Os vienenses: esplendor, decadência e exílio”, por Paul Hofmann (José Olimpio, 1996). Quanto à ligação de “Os vienenses” com o Direito, que tenho estabelecido como mote neste espaço jurídico-literário, isso, imagino, não será difícil de fazer. Afinal, Hans Kelsen, o célebre filósofo do direito, austríaco, é corriqueiramente chamado de o “Mestre de Viena”. Devo achá-lo, cedo ou tarde, despreocupadamente, em um dos tradicionais cafés vienenses, que sempre foram o centro da vida social, intelectual e política da capital do outrora Império Habsburgo, esfacelado após a morte do Imperador Francisco José e a Primeira Guerra Mundial.
Na minha busca por Kelsen e pelo Direito em “Os vienenses”, distraído, salto pela toca do coelho – como fez a Alice no País das Maravilhas – e me vejo personagem anônimo da obra que leio. Frequento os cafés vienenses. Procuro ler, à mesa do Central, do Landtmann, do Imperial, do Sperl, do Museum, do Griensteidl e de outros menos votados, como se deles fosse um habitué, páginas e mais páginas de um livro o qual, enfrentando quaisquer paradoxos, me criei figurante. Mas, curiosamente, sempre sou chamado a determinados trechos do livro, atraído por algo que não sei bem ainda definir. É como se uma antiga melodia, um dia esquecida, de repente ressurgisse com uma tonalidade diferente (mas, ainda assim, familiar) e me encantasse. E, em minha leitura de Viena, constantemente, esqueço a busca pelo direito e tudo me é música.
Inconscientemente, deixo-me levar pela música vienense e sua plêiade de maravilhosos músicos. Encontro Gluck, Haydn, Salieri e, de repente, Mozart, com sua Flauta Mágica. Se interrompo a leitura e ouço, extasiado, a ária Rainha da Noite, quase esqueço meu propósito de escrever esta crônica. Se volto ao livro, ainda não encontro Kelsen e o Direito. Esbarro, sim, mais uma vez, em música. E que música. O jovem Beethoven, sobre quem Mozart observou: “Fiquem de olho nesse aí. Ele terá alguma coisa a dizer-lhes um dia”. Ouço, mais tarde, o excêntrico Beethoven e sua 9ª Sinfonia, a Coral, consagrando a Ode à Alegria, de Schiller.
Todavia, tomado por uma inconveniente sensação de dever, decido procurar por Kelsen mais detidamente ou mesmo por outra nota qualquer acerca do Direito, que possa utilizar para “justificar” minha crônica. Não posso apenas falar sobre “notas” musicais. Poderia, assim, cansar meus poucos leitores. Afinal, que assunto mais “chato” é música se comparada com Direito, sobretudo com a Teoria Pura do Direito de Kelsen. Como quem procura acha, já diz o dito popular, finalmente, em brevíssima passagem, topo com o “Mestre de Viena”, como conselheiro de Carlos I (de imediato chamado, ironicamente, nos cafés de Viena, de “o Último”), quando da ascensão deste ao trono com a morte do Imperador Francisco José. Carlos I, a história veio a provar, além de o último dos Habsburgos, foi também “o Breve”. Não sei se por culpa do seu conselheiro. De todo jeito, uma experiência infeliz. Será que lhe faltou ritmo em uma cidade que respira apenas teatro e música?
É verdade que, em “Os vienenses”, às vezes, encontro também o verbo não musicado (e da melhor qualidade): um Stefan Zweig, um Elias Canetti, um Robert Musil, um Rainer Maria Rilke ou um Karl Kraus. Interessantemente, lá para tantas, no Café Herrenhof, esbarro com Kafka, autor de “O processo”, romance intimamente ligado ao Direito, cujo contexto gira em torno de uma personagem vítima de um “processo” que segue a (i)lógica do arbítrio. Mas, de fato, o que ouço são considerações poéticas acerca do início do romance de Kafka com Milena Jesenska Polak, a destinatária de suas “Cartas a Milena”, que, por sinal, era casada com outro (talvez por isso, acredito, o romance tenha sido em boa parte epistolar). Aliás, os vienenses, ouço dizer ainda, são dados a casos extraconjugais e, curiosamente, isso é aceito como fazendo parte da cultura local. Mas esse romance proibido não é algo que possa ser objeto de um tratado sobre Kafka e o Direito. Talvez algo menor, como outra crônica, quem sabe, um dia, talvez. De toda sorte, esse tipo de comportamento Freud, também personagem vienense do livro, pode explicar bem melhor.
Mas Viena – estou certo disso após minha metafórica temporada vienense – é, sobretudo, uma ode à melodia. Onde mais se poderia ainda encontrar com Schubert (o mais vienense dos grandes compositores) e seus “leider”, Brahms, Bruckner, Richard Strauss, Johann Strauss I e II (e suas valsas vienenses), Gustav Mahler e Arnold Schoenberg? E isso sem precisar ir a Wiener Staatsoper (Ópera Estatal de Viena), bastando apenas sentar-se em um dos seus muitos cafés, pedir um expresso ou um café turco, abrir um livro e ver a vida passar.
Finalmente, e o Direito? Onde acho o Direito para esta minha crônica?
Bom, me sobra Ludwig Wittgenstein que, em certo momento de “Os vienenses”, encontro. A obra do famoso filósofo austríaco, no que toca à filosofia da linguagem, para quem não sabe, tem hoje forte repercussão no Direito (que é, acima de tudo, linguagem), diretamente ou por intermédio do neopositivismo lógico e do Círculo de Viena. Na verdade, Wittgenstein, em seu Tractatus Lógico-Philosophicus, tenta (…). Pensando bem, é muito complicado explicar, aqui, a ligação de Wittgenstein com o Direito. E, como ele mesmo disse: “O que pode ser dito deve ser dito com clareza. E o que não pode ser dito, deve ser calado”.
Acho que vou é escutar a Ária na Corda Sol de Bach, meu compositor favorito e, infelizmente, não encontrado em “Os vienenses: esplendor, decadência e exílio”.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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